A folha em branco que divide mundos
Edição-ensaio onde divago sobre rituais de passagem e melhoria de entendimento de tudo o que nos cerca
Quando a gente rasga, rabiola. E como o mais subestimado dos apetrechos de um papagaio garante-lhe estabilidade e assertividade quando em manobras ofensivas.
Quando dobrado com paciência oriental, origami. A arte japonesa nos traz rinocerontes, cisnes, beija-flores e dragões e estes nos levam a imaginar um mundo poligonal e rapidamente terraformado como a possibilidade de sobrevida por aqui em nosso pálido ponto azul.
Quando umedecido com a própria saliva em formato de cone, arremesso ao teto. Estalactites mal-comportadas da turma do fundão, testemunhando jornadas acadêmicas de várias gerações.
Quando amassado em esfera, cesta de três pontos. E na parábola de seu trajeto, tempo suspenso onde a ideia ali anotada vale algo até se depositar no fundo da lixeira de canto, para nunca mais.
Cheia de propósitos e funções, a folha em branco tem assumido o lugar da amizade mais recorrente em vinte anos de produção de conteúdo. E digo, fisicamente mesmo, em uma coleção nada modesta de cadernos de rascunho e pré-pesquisa.
Na edição ensaio-pensamento de hoje, essa folha em branco assume o lugar da pedra-chave de uma estrutura medieval, responsável por sustentar os mais ousados projetos e sem qual, estes desmoronam. Ela é o centro. Antes dela, vazio. Depois, possibilidades, mudanças de realidade a partir da vontade manifestada. Alquimia.
O que me me lembra dois momentos em boa literatura e cinema razoável.
No conto “A história da sua vida” (1999, Ted Chiang), toda a aliteração de sua construção textual tem a genialidade depositada em uma única palavra central a partir da qual entendemos que o tempo segue outro rumo.
Esta posição de elemento central é tanto física (está em determinada posição do texto) quando temporal (pois divide o tempo da história em dois… ou, o afasta da dicotomia passado, futuro nos jogando no vazio randômico da quarta dimensão).
A história você já deve conhecer do cinema pois é o conto que deu origem ao filme “A Chegada” (2016, Denis Villeneuve). Para encurtar a história esta palavra-chave central é o equivalente no filme ao insight que a Dra. Louise Banks (Amy Adams) tem sobre a sua filha.
Este pequeno detalhe, no que antes era uma folha em branco, transforma a sua leitura uma experiência que também acontece no espaço e que divide em dois a noção de tempo.
Genial é pouco. Indico a leitura do livro que tem outros contos igualmente geniais deste programador novaiorquino que escreve obras-primas nas suas horas vagas.
Já no “O mundo depois de nós” (2023, Sam Esmail), que você pode ver na Netflix na qual ficou em Top1 no final de semana, temos o inesperado passeio de final de semana se transformando em bastidores da queda da Pax Americana, que naufraga mais rápido do que um Titanic, nos estalidos de sua incapacidade generalizada.
Espécie de ODE ao egoísmo do século XXI, mostra sem dizer e diz sem concluir uma série de coisas que podem estar entaladas na sua ou na minha garganta, mas que são muito bem resumidas com uma ou duas frases simples do pai da família, professor universitário em momento de anti-clímax do roteiro: "não sei fazer quase nada sem meu celular e meu GPS”, “Sou um inútil”.
Esta cena se dá durante alguns segundos ali pelas 2 horas de filme. E marca sua mensagem central a partir do qual nos é entregue a conclusão mais americana de todas: minha pequena ilha de egoísmos é mais importante do que todo um continente Atlântida que afunda com o nosso futuro.
Trouxe estes dois momentos "folha em branco”, para mostrar como eles são decisivos para o mundo das ideias. Os dois foram, em algum momento, um todo de possibilidades criativas, momentos de decisão, necessidade de mudança.
O que separou estas duas obras foi a mão de quem preencheu essa folha em branco. Que poderia ser a mesma que a rasgava, amassava, dobrava ou…cuspia.
Folhas em branco não mudarão o mundo sozinhas. Explico melhor em breve.
E, em meio a essas divagações, indicando um excelente livro de contos para a provável audiência, diretamente da tríplice fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura; que me despeço.
Sem biscoitinhos. Esperando o sol em 2024.
Até.
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