A humanidade que some quando a humano sofre
Primeira semana do ano expõe a importância do resgate do humano em meio à falácias tecnológicas que propõe afastamento planejado
Penso que a primeira semana de 2022 foi um intensivo de realidade em vários aspectos mas começo por saudar você que chegou aqui na leva de pouco mais de 800 novos assinantes importados de uma base muito especial, candidatos a redatores da contemconteudo.com.
Explico: a partir de 2014 organizei a captação e treinamento de redatores para os projetos da produtora a partir de um processo online que me possibilitou estes anos todos reconhecer habilidades, treinar e colocar em atividade mais de 250 profissionais de todas as formações, locais do Brasil e níveis de senioridade. Não foi uma jornada fácil e a quem ousou estar comigo nela, meu muito obrigado.
Mas o fato é que como mencionei na primeira edição do ano, optei pela simplificação absoluta, esta que é a máxima sofisticação possível, concentrando todas as bases de disparo nesta aqui, que chegou até você, minha provável audiência, nesta manhã de quarta-feira.
E é isso: integrantes ou postulantes a atuarem nas minhas equipes chegam agora como reforço para debatermos ao longo do ano os fatos únicos que despertarão, a cada edição, a nossa vocação de habitantes deste posto de fronteira entre a tecnologia, a comunicação e a cultura. Sejam bem-vindos!
(Aos que não curtirem a ideia, cabe lembrar que não existe qualquer relação entre a permanência nesta lista e possíveis projetos no futuro, assim como a permanência não assegura qualquer vantagem em futuros processos seletivos. Fiquem à vontade para cancelar seu cadastro, ir para a praia, ler um livro e buscarem os seus.)
O fato é que a primeira semana de 2022 nos revelou aquele tipo de recorte da realidade que sempre foi necessário e até por isso bastante desmerecido. Aliás, é por isso que as coisas são necessárias: porque teimosamente nos esquecemos delas…
Olho para meu caderno de notas e a dificuldade se mostra clara: como rivalizar a dimensão do humano e a abstração de humanidade? Somos egoístas no dia a dia mas tendemos à altruístas no longo prazo. Não é uma tarefa fácil.
Circulo pelos links. E o que noto é que em filas de vacina e testes de nossa fase todo-mundo-em-Ômicron, em cenas chocantes do desabamento em Capitólio e das barragens do interior de Minas Gerais, nas notícias que nos vêm de outras paragens abordando o desabastecimento de mercados e esgotamento de espaços de acolhimento e até mesmo na falta de humanidade daquele que nunca merecerá um link por aqui; a certeza que nos fica é que a dimensão do humano se apresenta emergente e urgente porque… nos esquecemos dela em troca de um fornecimento sem interrupção de nosso estoque de pílulas azuis.
A presença física, a realidade tempo-espaço, o cheiro e toque, todas essas formas de se estar sincronamente no mundo, há dois anos sublimaram-se em notas de auto-preservação. Vivemos o indivíduo em sua expressão mínima, e contraditoriamente em sua manifestação máxima, e com isso abstraímos por demais a nossa noção do humano. Sim, é possível este tipo de convivência antagônica. Somos especializados nisso.
Lembro de sinalizar que abordo o fato a partir de uma lógica racional. De como PENSAMOS a situação e não como SENTIMOS ou SIMULAMOS REAÇÕES socialmente aceitas. É importante parecer altruísta, claro. Simulamos correntes de pensamento inteiras para justificar esse ponto.
Mas, na prática somos ainda mamíferos sedentos de energia para sustentar cérebros desproporcionais ao nosso corpo, que teimou em seguir de pé. O resultado desta contradição - que Freud chamaria de Mal Estar da Civilização, por exemplo -, são momentos como o que vivemos hoje: para justificar o humano em mim, me surpreendo quando falta o humano na comunidade para me atender.
Lembro que de nada adiantaria seguir em elocubrações sem tangibilizar o fato, uma de nossas missões por aqui. A boa notícia é que eles estão ao nosso redor, gritando. Como sempre bato o limite de caracteres nas edições, serei breve e vou abordar apenas dois.
Dois exemplos para entender melhor: Karens e The Great Resignation
Por força de minhas quatro atividades profissionais principais, consumo muito conteúdo digital em grande parte das plataformas disponíveis. Esse comportamento me leva a tentar variar a forma como o algoritmo me atende, ora hackeando suas entranhas, ora me submetendo a sua maré de indicações.
E em um dia em que me deixava levar pelo vento, fui apresentando às Karens. Na necessidade de defini-las, aí vai: mulheres em sua maioria brancas, do meio-oeste americano, cristãs (algumas fundamentalistas), elas manifestam sua ira auto-centrada em alguns territórios bastante específicos.
Assim, Karens não tomam vacinas, não usam máscara em qualquer lugar incluindo aviões e restaurantes, não aceitam serem atendidas por imigrantes, tiram fotos de pessoas que consideram estranhas à sua comunidade e, em casos extremos, violam correspondência por achar que “você está recebendo muitos produtos da Amazon, quero saber o que são”. Estes dois últimos comportamentos, infelizmente, dedicam a americanos negros em sua maioria seus vizinhos de porta. Sim, Karens são extremamente racistas e xenofóbicas.
Karens estão para a expansão da Ômicron assim como o vento está para a vela de um barco que navega a esmo e sem ninguém ao leme, como aquela corrente que me levou até elas.
Nas últimas semanas, algumas das Karens se depararam com o nosso segundo exemplo, porque você sabe, tudo está conectado, o que está em cima é igual ao que está embaixo, como a Gnose não nos deixa esquecer.
O segundo fato é que existe neste momento nos EUA (desde o segundo semestre de 2021 para ser mais preciso) uma grande debandada de funcionários midlevel, aqueles que fazem as cadeias de fornecimento e atendimento acontecerem.
O movimento já tem até nome, “The Great Resignation" (Grande Demissão, em tradução livre) e está afetando diversos setores. Para entender melhor indico este episódio do podcast What Next, da Slate que entrevistou alguns dos profissionais nesta situação.
Em excelente artigo no mesmo site, Aaron Mak traz uma foto precisa desse momento de encontro: Karens não entendem por que prateleiras estão vazias e lá do fundo, uma voz se ouve: “redes de distribuição são feitas de pessoas”. E as pessoas a) estão doentes porque a cobertura vacinal nos EUA é deficitária em função do movimento Anti-Vax; b) morreram; c) pediram demissão porque as condições estão além do suportável.
Para além das prateleiras, a carência do humano se manifesta naquele que é o epicentro do nosso “momento atual que não passa desde março de 2020”: o hospital. Milhares de pacientes chegando para internação devido ao potencial devastador da nova variante encontram equipes defasadas e profissionais resistentes quase a beira do colapso. Um sistema que faliu em silêncio, como nos lembra a matéria do The Atlantic que saiu na última sexta-feira. Viva o SUS?
O humano incomodado porque a humanidade sofre e uma humanidade que sofre porque a noção do humano está em crise.
Foi nisso em que nos metemos.
Mas calma que tem mais. Não se esqueça que esse sistema nos premiou com um tipo de humano bem específico: os bilionários.
E, em meio à realidade, a ficção irresponsável
Lembro que sou filho de um futurista amador. Mesas de café da manhã eram repletas de teorias de “e se”. E se a gente já conseguisse viajar para Marte? E se encontrássemos vida inteligente por lá? E se resolvêssemos toda a miséria do mundo? E se existissem TVs gigantes tão finas que pudessem ser colocadas na parede como um quadro em 1982? Resolvo elucidar: eram abstrações tratadas como ficção possível. E apenas isso e depois disso íamos para trabalho e escola.
Só que hoje, enquanto Karens encontram prateleiras vazias e hospitais cheios, uma outra linha busca oferecer a pílula azul definitiva, aquela que vai curar todos os males do humano faltante: a abstração completa da realidade.
Você vai me ouvir falar muito criticamente do Metaverso por aqui ainda, então vou poupar meus argumentos para uma próxima edição. Mas o fato é que no lugar de resolver esta que é uma das piores crises sanitárias dos últimos 100 anos, essa turma que referenciei aí em cima, está moldando uma realidade paralela a isso tudo, na qual seremos avatares serenos e incorruptíveis que no lugar dos santos de corpos que não definham espalhados pelo globo, estarão de pé, mostrando-se eternos.
Resolvo me aproximar do final desta edição, construindo uma questão para deixar no ar. Uma que conecte a necessidade de falar sobre algo externo enquanto o que está ao redor se esvazia, adoece e morre.
Você acha que é por acaso que bilionários das plataformas propõe outra realidade, seja ela terrena simulada ou externa para poucos que pagarem viagens para fora?
Quero te ouvir sobre as duas questões destacadas:
Tá bem, vamos esfriar a cabeça (ou nem tanto)
Falei demais e esqueci de que um dos meus grandes prazeres em editar essa newsletter é trazer referências complementares. Não só links, que já moram embedados ao longo do texto, mas leituras mais atentas mesmo. Ou “plays” que você possa se divertir aprendendo, por que não? Sem mais vamos lá:
Uma abordagem para o entendimento dessa rivalidade humano x humanidade são os textos sobre transhumanismo. A dica é começar pelo "O Homem pós-orgânico", de Paula Sibila. Professora da UFF, Sibila tem argumentos importantíssimos para entender como o corpo foi tratado e colonizado ao longo dos diversos paradigmas que vivemos, industrial, pós-industrial, futuro.
Do corpo para o imaginário, o trajeto nos leva ao "A Religião das Máquinas", de Erick Felinto. O autor é também coordenador do PPGCOM da UERJ e trabalha no campo da construção de imaginários. Aqui, temos ensaios sobre uma possível análise de nossa interdependência das máquinas a partir da construção de folclores ao redor de sua emergência. É um livro um pouco mais antigo, mas de atual validade.
Para mergulhar no universo das Karens com algum humor possível, os fãs de animação poderão curtir a série “O departamento de conspirações". O plot é esse mesmo: e se todas as conspirações fossem de fato reais e existisse um departamento para acobertá-las?
Todo mundo já indicou, mas no clima documental ao qual essa newsletter almeja, aí vai: Don't Look Up ajuda a complementar com notas de picardia, as opiniões sobre a raça dos bilionários, que tanta dor de cabeça nos trará, além é claro de demonstrar quase que didaticamente a merda que negar o pensamento científico pode gerar.
E para fechar, ainda surfando na onda coreana inaugurada por Round 6, a série de ficção científica “Mar da tranquilidade” nos propõe a partir da velha lenga-lenga de “oh, meu Deus, descobrimos algo na Lua”, uma reflexão sobre exaurir reservas naturais de água aqui na Terra. Alguma dúvida de que isso está logo ali?
Links aos quais só os meus assinantes têm acesso
O grande barato do Substack é ter nascido em essência como uma plataforma de assinantes que querem valorizar o seu produtor de conteúdo preferido. Mais do que isso, essa valorização passa por entender um pouco do processo criativo de cada um deles.
Na temporada 2022, a [Read], [Rec], [Play] vai aprofundar ainda mais sua investigação para trazer à tona os produtos/fatos de conteúdo que morem na fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura. Para se chegar às apostas semanais, claro, rola muita leitura. E é aqui que começa a ficar interessante: os assinantes terão acesso diretamente no email, de acordo com os eu status a uma curadoria de referências.
Esta semana, passei por 16 links bem interessantes envolvendo territórios como Metaverso, Inteligência Artificial e projetos para preservação da conhecimento humano. Eles deram origem ao pensamento aí de cima.
Como? Lá na edição fechada eu explico! Vem comigo debater.
Não, não sou pessimista.
;)
Acredito que o ano começou uma loucura, e sim, com a entrada do meta verso estaremos cada vez mais próximos da desumanização e de um Black Mirror quem sabe até de um Homo Deus (é claro que o Homo Deus serão os bilionários) do que do fim da fome ou de um planeta mais próspero para todos. Para quem cresceu nos anos 90 e 2000 e pegou a entrada da internet e da computação, parece loucura as pessoas comprarem casas em um universo ficcional é como se o The Sims saísse das telas e se tornasse semi-real.