Apple segue com sua jornada de assédio moral
Mas isso não é novidade no mundo tecnodigital. Por que ainda nos supreendemos? Vou explicar.
Leio um artigo na MotherBoard e resolvo trazer alguns pensamentos sobre esta eterna encruzilhada entre esperança e desalento que o galope do avanço tecnológico nos leva a considerar como única realidade possível.
Percebo como é inútil a surpresa sobre essa tendência da internet apenas amplificar o que temos de bom e ruim. Primeiro, porque não é novidade alguma: murais nas feiras medievais já exageravam no grotesco das descrições de culminâncias reais e boçalidades do povaréu ali pelo sec. XVI1.
Depois destes tempos perdidos na história, falando somente de nosso período industrial, tivemos folhetins, jornais de grande circulação, programas de rádio - em qualquer fase pelas quais passaram (sobre elas falei nesta edição) - , os absurdos da TV aberta e depois mais tarde a conexão em uma rede mundial e todas as plataformas de comunicação que dela surgiram.
Estes extratos arqueológicos possuíram em comum a crescente capacidade de amplificar o que temos de sublime, mas também, aquele outro lado com o qual planejamos, por exemplo, o ataque aos primos Neanderthais.
Casos não faltam. Vamos falar sobre alguns deles?
O que tem rolado por aqui na [Read][Rec][Play]?
Repetindo sempre: por aqui você será levado - ou encontrado - para a tríplice fronteira entre Tecnologia, Comunicação e Cultura. Se liga nos links:
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Sempre existiu. Mas o pra sempre, sempre acaba
Em 10 de junho de 2021, penso que você poderia ter lido sobre o caso envolvendo assédio moral nos times da Amazon Prime. Segundo matéria da Business Insider, “ex-funcionários acusam o departamento da empresa de discriminar por conta do gênero, além de relatos de assédio moral no ambiente de trabalho. As vítimas seriam, na maioria, mulheres."
Pouco antes, em abril, ficaria sabendo sobre uma pesquisa conduzida pela organização sem fins lucrativos Project Include, que reportou aumento nos casos de assédio moral (e até sexual) nas empresas do vale do silício no período pandêmico. Sim, nem o trabalho remoto sossegou o ímpeto de bilionários da Califórnia.
Mas movimentos existem aqui e li. Desde 2019, por exemplo, a SafeSpace oferece uma plataforma para ajudar a identificar, tratar e resolver casos de assédio nos ambientes corporativos. Criada pela brasileira Rafaela Frankenthal, a plataforma já ajudou a retrabalhar a cultura do assédio em empresas como a Nexo Jornal, por exemplo.
E, claro, cabe mencionar o trabalho incansável do Ken Fujioka que, a frente do Grupo de Planejamento de São Paulo e de sua consultoria ADA Strategy, promoveu uma série de visitas à agências e eventos do segmento apresentando uma foto - infelizmente sempre atual - com os resultados de seu estudo “Hostilidade, silêncio e omissão: o retrato do assédio no mercado de comunicação de São Paulo” (material completo aqui).
Da época, me recordo do dados mais alarmante de todos: a metodologia de abordagem para a divulgação dos resultados do estudo envolvia uma ligação para CEOs destes grandes grupos, para que se agendasse a visita. Não raro Ken sequer era atendido.
Era 2017. Veio 2018, 2019 e 2020 e com ele, a Pandemia. Nada mudou.
Falei de [Read], tá na hora do [Play]
O fato é que tudo isso me veio a cabeça enquanto vivia um final de semana como todos os outros, entre leituras e merecido descanso e, sem mais nem porque, resolvi dar mais um [Play] no Jobs, disponível na Netflix.
Não por desconhecer a jornada do criador da Apple, até resenha sobre sua biografia e matéria para o TechTudo já fiz à época de seu passamento, mas queria revisitar alguns pontos. O fato é que até as cinebiografias, que no geral tendem a ser positivas com seus retratados não deixam de lado uma das características mais definidoras do criador do iPod: o cara era um babaca.
E eram diversos níveis de babaquismo. Era tóxico enquanto gestor, péssimo amigo dos amigos (vale procurar sobre o caso de Daniel Kottke, um dos primeiros funcionários da marca, ainda na garagem californiana), renegou a filha durante anos, tinha estranhas noções de meritocracia e… enfim, uma imensa lista.
E é aqui o ponto central da [Read][Rec][Play] desta semana: casos recentes como os da Amazon, ou os bem antigos como os da Apple servem sempre para nos lembrar uma máxima que tenho ouvido recentemente e com a qual concordo cada vez mais:
Empresas não têm valores. Pessoas, sim.
Portanto, não é à toa que os casos se repetem mais e mais. Não por acaso novas gerações têm demonstrado aversão ao que antes era desejado, trabalho em empresas pseudo-disruptivas do vale do silício. Não é de se espantar que o Ken Fujioka penou para até mesmo, conseguir agendar uma visita para de forma pró-ativa DEMONSTRAR POR A + B que a forma de se relacionar com pessoas estava (está) errada no mercado de propaganda paulista.
Por que todos esses conglomerados de pessoas comungam certa dose de valores venenosos. E, por isso, inoculam a mesma poção nas estruturas que ajudam a (des)construir. Quando você consegue desmontar esse arquétipo, tudo fica mais claro.
E se não ficou, deixe-me trazer o exemplo mais recente de todos
Provavelmente você deve ter sido impacto com vídeos de “Bama Rush”, o processo seletivo para irmandades e fraternidades da Universidade do Alabama que invadiram o TikTok há algumas semanas.2
O que o desfile de beldades esconde, contudo, segundo matéria na The Cut (excelente site + newsletter, recomendo), são episódios de discriminação racial recente durante o processo, com direito a concorrente de peso eliminada logo no início por… bem… ser negra…
E não fica só por aí: pobre também não entra. Outras barreiras são impostas, inclusive, para quem não contar com a possibilidade de atingir determinada realidade econômica. Só o aluguel do quarto em uma das irmandades custa a bagatela de U$ 7K por semestre. Saudades bandejão da UFRJ!
E, acreditem, essa nem é a questão. O ponto crucial que determinou a entrada desta informação aqui na [Read][Rec][Play] desta semana é outro. Prontos?
Em 2014, a Universidade de Cornell descobriu que, embora apenas 2% dos universitários americanos consigam entrar para uma fraternidade, 80% dos executivos mais bem pagos e 76% dos senadores americanos vieram de uma.
Captou?
Vamos recapitular
Não é novidade que a internet amplifique o bom e o ruim em todos nós, pois já fazemos isso desde sempre com ferramentas diversas - antes da rede mundial de computadores (momento Fantástico!)
A própria cultura que deu origem à internet, na figura de suas empresas unicórnio no Vale do Silício, ajuda a nutrir ambientes tóxicos, que já vieram à tona em casos recentes da Apple e da Amazon
Até mesmo em biografias lembramos que um dos ícones do período 1970-2010, Steve Jobs, até que provem o contrário, um babaca
E conseguimos conectar um meme recente - o Bama Rush no TikTok - ao nascedouro deste ambiente, o processo seletivo segregacionista das fraternidades nas universidades americanas.3
Não existe novidade e desconforto quando o contexto favorece quem discrimina.
Perguntinha pra fechar? Vamos lá!
Qual sua dica para agirmos assertivamente para tentar mudar essa cultura?
Tá lá no Pantagruel e Gargântua de Rabelais
Aqui cabe certa justiça: Steve Jobs era um outsider neste mundo de fraternidades, como podemos ler na biografia escrita por Walter Isaacson.