Aquele em que filmes, séries e audiobooks nos contam uma história sobre liberação
Arquétipos são úteis na maioria dos casos mas não em todos. Este e-mail é sobre quando não são.
(antes de começar, lembrando que temos um servidor no Discord e um grupo no Telegram e até um Canal no Instagram para seguirmos conversando durante a semana. Passem por lá!)
Abro essa jornada avisando que vou conduzir você em um trilha de desvelamento e fazer uma pergunta: como nos liberar de arquétipos e personas que nos impõe as histórias e a própria - e sempre supervalorizada - realidade? Pois é, me pego pensando nessas coisas por aqui.
Nosso ponto de partida será a sutileza da desconstrução de identidade de uma maestrina da ficção, depois uma passada pela lições que uma curiosa máfia criada em São Paulo nos anos 80 (e liderada por pessoas T) e, por fim, aportar em seu smartphone, mais precisamente no TikTok.
Penso que para começar a falar - ainda que superficialmente, ainda que da fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura - sobre a possibilidade da liberação dos arquétipos, uma mirada interessante é abordar como ícones e produtores desta mesma cena cultural são retratados em narrativas atuais. Complexo? Tá, vou simplificar: temos que passar por alguns filmes, séries e audiobooks recentes. ;) E, a partir disso, imprimir em nossas próprias jornadas como isso se dá.
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[PLAY]: TÁR, JUNGLE, JACKO & LOGAN ROY
Vamos de um [PLAY] do final de semana passado? Em TÁR (2022, Todd Field) temos uma Cate Blanchet incorporada pela maestrina Lydia Tár, talento precoce de outrora que, em sua idade madura, enfrenta algumas questões envolvendo o seu programa de formação de jovens talentos, enquanto prepara a sua versão da Quinta Sinfonia de Mahler, à frente da Filarmônica de Berlim.
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A jornada da personagem, ainda que sempre abrilhantada por Blanchet, é claudicante e demonstra a já outrora retratada alienação de certos gênios, sua amoralidade, desconexão com o outro em uma viagem ao seu próprio apocalipse. Não é uma abordagem nova na vida de personagens do gênero. Vimos isso nas cine-biografias do Steve Jobs, por exemplo.
No caso da personagem principal, esse desmonte nos é apresentado em três grandes movimentos: Ato I, como sucesso; Ato II como crise identitária e Ato III, como recomeço medíocre. Quase operístico, vale dizer. Mas, ainda assim, sutil.
Aqui, o desmonte liberta.
Vendo o filme, me senti reencontrando a curiosa série Mozart in the Jungle (2014, Prime Video), que nos apresenta o universo fictício da Orquestra Sinfônica de Nova York e as mudanças com a chegada de seu novo e, mais uma vez, exótico maestro, Rodrigo De Souza, interpretado por Gael García Bernal. Aliás, sobre música clássica e tipos estranhos, vale ler este post aqui que escrevi tem anos.
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A primeira temporada, embora se esforce para não soar complexa em seus dramas, tramas e subtramas, já nos apresenta personagens mais engessados. É um produto mais comercial em essência. Acompanhamos os diversos desafios na vida da orquestra, desde ensaios até questões pessoais, mas morando dentro do lugar seguro das fórmulas esperadas.
Aqui, o arquétipo pasteuriza
Mas, nas telinhas de hoje, nada se compara à prisão dos arquétipos mais operísticos possíveis do que... Succession.
Succession (2018, HBO) é uma série que traz uma visão muito particular da dinâmica de poder em uma família de magnatas. Ainda que a trama seja estruturada como um drama familiar, é inegável a presença de elementos operísticos na construção dos personagens e na forma como suas histórias se desenrolam.
Assim como em uma ópera, os personagens de Succession são essencialmente arquetípicos e representam diferentes facetas da sociedade contemporânea. Temos o patriarca Logan Roy, um homem poderoso e autoritário que controla um império midiático; seus filhos, que lutam pelo controle da empresa e por sua aprovação; e diversos outros personagens que orbitam em torno desse universo de poder e dinheiro. Greg cabeça de ovo, inclusive.
A série Succession está aqui porque utiliza esses elementos da Ópera (alguns alegam que é mais shakespeariano do que Ópera, mas vá lá...), mas também nos mostra como a visão arquetípica pode ser aprisionadora. Não existe vida fora do universo do velho Logan. Não existe argumento que contradiga sua maneira de ver o mundo e, até mesmo, escolher os presidentes dos EUA. É isso ou… “Fuck off”, sua fala preferida e memética, sacad sempre que quer ignorar outras visões de mundo.
(Cabe o parêntesis: quando essa edição chegou à caixa postal dos assinantes pela primeira vez, Succession tinha acabado de iniciar sua última temporada)
Mas e quando, em contraste à prisão arquetípica, temos uma libertação fluida e verdadeiramente multifacetada? E se isso se passa no submundo da noite paulista dos anos 1970 até 2000?
[PLAY]+[READ]: MÁFIA PAULISTANA NA COMUNIDADE T
De vez em quando dou chance aos audiobooks. Podcaster que sou, tenho essa conexão auditiva, uma espécie de nova artéria que liga meus ouvidos ao coração. Coincidentemente, como segundo audiobook de minha playlist, dei [PLAY] no “Rainhas da Noite”, do Chico Felitti, que a provável audiência deve conhecer pelo “A mulher da casa abandonada”, podcast sensação do final do ano passado.
O audiobook (exclusivo da Storytel, que aliás recomendo) conta a história de três travestis que comandaram a prostituição no centro de São Paulo entre as décadas de 1970 e 2000. A obra traz informações que foram apagadas da história oficial e que foram resgatadas por meio de entrevistas com mais de cem pessoas que conviveram com as personagens. A hipótese é que estes personagens reais sofreram algo chamado “violência documental".
Funciona como um resgate da memória de um grupo que foi marginalizado durante muito tempo e que sofreu com a violência e o preconceito da sociedade e está aqui por que me remete a uma possibilidade de transgressão arquetípica fundamental. Um ricocheteio para cima de quem enclausura determinados grupos sociais a partir das expectativas ou limitações de seu próprio mundo.
(Revisando e reescrevendo sem parar essa edição na última semana me ocorreu que Felitti nos traz uma releitura interessante de outro mito - este europeu - a das três fiandeiras de Grimm, que Neil Gaiman revisitou em alguns momentos de arcos de Sandman…)
Um detalhe cuidadoso da produção: a versão em áudio conta com a narração da atriz transexual Renata Carvalho, que dá voz às histórias de travestis narradas por uma travesti, um dos acertos da assinatura sonora, apesar de certos vacilos técnicos bobos, como erros de pronúncia e entonação de frases.
Para além disso, à luz doo que nos trouxe aqui, cabe lembrar aque:
Aqui, trabalhamos uma dualidade entre liberação e aprisionamento.
[READ]: NO MEU TEMPO É QUE ERA BOM
Lembro que avisei à provável audiência que desceríamos do Olimpo da música erudita até as suas mãos, enquanto estivesse no mais banal dos distraimentos, uma sessão de TikTok.
Ocorre que, quem diria - embora não me surpreenda: segundo a Wired, o TikTok pode estar contribuindo, na esteira de seu crescimento, para a criação de novas formas de ageísmo e mudanças na definição do que é ser "velho". Por isso, entenda influencers mais velhos usando filtros para parecer mais jovens (Teenager e Bold Glamour, para citar os dois mais famosos) e usuários mais novos rotineiramente chamam pessoas na faixa dos 30 anos de "velhas".
Esse tipo de comportamento não é novo, mas as redes sociais permitem que opiniões mais duras e hostis sejam expressas abertamente, como no caso das duas estudantes ignorantes, que debocharam de uma caloura de 40 anos.
Se você pensar bem, como pontua a matéria, estranho é se fosse diferente. Com o capitalismo moderno, a indústria antienvelhecimento cresceu e ganhou destaque no TikTok, com influencers sendo incentivados a promover produtos que prometem manter a juventude. Daí, a tendência nasce do comportamento, mas tem o poder de abastecê-lo também, o reincidente ouroboros do contemporâneo.
A Wired segue ainda sugerindo soluções, como a exposição a diferentes formas de envelhecer e o desmantelamento da ideia falsa de que temos mais em comum com pessoas da nossa própria idade ou ainda usuários mais velhos (opa!) ajudando a mudar essa mentalidade mostrando suas vidas online e provando que a vida não acaba aos 20 anos. Aliás, nem começa na maioria dos casos.
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Vamos agora a um pequeno resumo antes de nos despedirmos por mais uma semana?
Apenas para lembrar, fazendo aqui as vezes de artefato didático: os arquétipos são representações simbólicas de personagens que podem ser encontrados em diversas histórias, desde contos de fadas até produções cinematográficas. Eles são utilizados para criar personagens com características que são facilmente identificáveis pelo público, o que pode tornar a narrativa mais envolvente e interessante.
No entanto, o uso excessivo de arquétipos pode levar à criação de personagens estereotipados, que se encaixam em padrões pré-concebidos e limitantes. Isso pode resultar em histórias pouco criativas e com pouca profundidade emocional.
Em "TÁR", a personagem principal enfrenta uma crise identitária enquanto lida com a pressão de ser um gênio em sua área. Embora a personagem seja baseada em um arquétipo conhecido, o filme oferece uma visão mais complexa e sutil da personagem, explorando suas vulnerabilidades e falhas de caráter.
Já em Succession, os personagens são arquetípicos e representam diferentes facetas da sociedade contemporânea, mas o enredo mostra como essa visão pode ser aprisionadora. A série retrata uma família de magnatas em uma luta pelo poder e controle, mas ao mesmo tempo que os personagens são baseados em arquétipos conhecidos, a narrativa desafia as expectativas do público e oferece um olhar crítico sobre a dinâmica de poder na sociedade.
Em contraste, "Rainhas da Noite" apresenta uma história vibrante e multifacetada sobre a vida noturna de São Paulo nos anos 70, com personagens que desafiam estereótipos e lutam por reconhecimento e respeito. O trabalho oferece uma abordagem mais livre e fluida da representação de personagens, evitando a criação de estereótipos limitantes e oferecendo um ponto de vista diferente e importante sobre a comunidade LGBTQIA+ e sua luta por reconhecimento e respeito.
Nesse sentido, o uso consciente e crítico dos arquétipos é fundamental para a construção de personagens e enredos interessantes e envolventes. Quando usados de forma adequada, os arquétipos podem ser uma ferramenta poderosa para a criação de personagens complexos e emocionalmente ricos, que desafiam as expectativas do público e oferecem uma visão mais profunda e significativa da vida e da sociedade.
Quando funcionam como prisões para nossa vida (usando aqui o termos como faz brilhantemente
há pelo menos 15 anos), o papo é outro. E se fosse para resumir, uma vez que já esgotei há algumas dezenas de toques o limite aceitável para a quantidade de texto em uma newsletter, aí vai:Carregá-los como modelo para a vida é tudo, menos saudável.
…e se você fosse meu assinante regular?
Fazer newsletter é como conduzir uma orquestra inteira. Por isso mesmo, consome algumas horas do condutor, no caso eu. Que tal apoiar não só a mim mas todos os criadores de conteúdo deste ambiente? Essa é a ideia por trás do Substack, aliás: permitir a quem é ligado umbilicalmente a produção textual, conseguir captar alguns caraminguás.
Eu pensei no seguinte: por apenas R$ 7 mensais, você garante recompensas alinhadas com o meu trabalho por aqui:
Acesso direto à íntegra de materiais das minhas pesquisas, o que é uma super-referência;
E como conversa é o que move o mundo, temos um grupo fechadíssimo em nosso Telegram para seguir conversando, indicando leituras e debatendo os temas dos programas. Normalmente, entro em contato tão logo a pessoa assine. Mas, caso tenha deixado passar, fala comigo!
Você têm uma hora por mês de assinatura para trocar uma ideia comigo sobre projetos de conteúdo. Não é bem uma mentoria, é um papo, sabe? Pode trazer sua dúvida, uma ideia, um pedido de revisão etc.
Caiu na minha caixa postal, mas poderia ser a sua…
Hoje o destaque vai para
que edita o podcast que também é uma newsletter chamado The Lunar Society. São entrevistas com cientistas, intelectuais e demais pensadores sobre grandes temas do momento.Lembrando que esta e outras newsletters ficam muito mais legais de ler no app aqui do próprio Substack. Chega mais!
Biscoitinhos para a provável audiência que mora também na tríplice fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura…
Depois me muito esperar, já posso linkar minha Dissertação para vocês lerem. Em minha pesquisa para mapeei a produção de dois podcasters independentes para responder à questão: “plataformas interferiram na maneira de produzir podcasts depois de 2016?”. Vem descobrir… »
O YouTube finalmente criou seu espaço para criadores de conteúdo administrarem seus podcasts na plataforma. A funcionalidade foi liberada para todos os perfis e encontrei um guia completo para implementação de um podcast, além de uma seção de ajuda por lá… »
DNA cabelo de Beethoven que vale por um programa do Ratinho! Um estudo publicado na revista Current Biology analisou fios do cabelo de Ludwig van Beethoven, proporcionando novas informações sobre sua saúde e genealogia. Contrariando crenças anteriores, a pesquisa mostrou que Beethoven não sofria de intoxicação por chumbo. A análise também revelou que o famoso músico não tinha relação genética com a família de sobrenome van Beethoven na Bélgica, o que indica um caso extraconjugal em sua linha paterna. / A equipe de pesquisa obteve acesso a oito mechas de cabelo, incluindo uma atribuída a Ferdinand Hiller, que, após análise, descobriu-se que pertencia a uma mulher de origem judaica ashkenazi, e não a Beethoven. Dos outros sete fios de cabelo, cinco tinham DNA idêntico e dois possuíam históricos impecáveis de proveniência, fornecendo evidências convincentes de que eram de Beethoven. / A análise do DNA de Beethoven forneceu pistas sobre sua saúde. Ele possuía variantes genéticas que o predispunham a doenças hepáticas, e vestígios de DNA do vírus da hepatite B foram encontrados em seu cabelo, indicando uma infecção por esse vírus. No entanto, a análise não apontou uma causa para seus problemas digestivos e não ofereceu explicações para sua perda de audição. Venha conhecer essa história de perto no NYTimes… »
Sou fã do IFTTT desde quando nem versão paga existia. O IFTTT, você sabe é um serviço de automação de serviços WEB, tipo um avô das I.As. Mas o fato que agora existe e mais do que isso anunciou integração com serviços de I.As no dia 22/03. São três novos serviços (AI Social Creator, Ai Content Creator e Ai Summarizer) que podem ajudar a economizar tempo e aumentar a eficiência ao, respectivamente, criar chamadas para conteúdos, rascunhos para posts e resumos de reuniões e textos mais longos. Interessados podem experimentar esses serviços gratuitamente se inscrevendo para um teste do IFTTT Pro+… »
ChatGTP está aceitando plugins e conteúdo em tempo real, atual e vivo. Com os plug-ins, o bot pode não apenas navegar na web, mas também interagir com sites específicos, potencialmente transformando o sistema em uma interface abrangente para diversos serviços e sites. Inicialmente, 11 plug-ins para sites externos estão disponíveis, incluindo Expedia, OpenTable, Kayak, Klarna Shopping e Zapier. A OpenAI também está fornecendo plug-ins próprios para interpretação de código e navegação na internet. A OpenAI afirma ter implementado salvaguardas para lidar com preocupações de segurança e está limitando a disponibilidade dos plug-ins a um pequeno número de usuários inicialmente. Você pode se assombrar e imaginar desdobramentos neste artigo do The Verge… »
E vamos concluir essa jornada com aquele [READ] de respeito. Nesta edição, um clássico da terceira fase do filósofo francês Michel Foucault. O livro reeditado pela UBU é uma coleção de conferências realizadas no início dos anos 80 sobre “a cultura de si ". É quase como texto seminal para quem ousa abrir a caixa de pandora do estudo de formação de identidade.
Muito bom! Agora estou curioso pra entender a noite paulista dos 70 e isso vai me fazer superar o preconceito com audiolivros. Mas parece valer a pena. Fiquei pensando se não vale uma menção ao Jung quando você define arquétipos. Pode ajudar com mais uma camada de significado e importância na nossa vida. Abraço e até semana que vem.