Áudios ao vivo: pensamentos sobre o sequestro do tempo síncrono
Clubhouse, Twitter Spaces e Spotify GreenRoom, por que um novo rádio nasceu da desmaterialização da presença
O mundo pandêmico nos legou certa imaterialidade, como muito bem tem pontuado o Michel Alcoforado em suas loucurinhas por aí no mundo digital. Nos trancamos em casa, nos vestimos só da cintura para cima e nos comunicamos - pelos menos aqueles mais privilegiados - , a partir de janelinhas de vídeo, através das quais outras pessoas trancadas em casa e vestidas da cintura para cima confabulam, tramam, amam, odeiam e entregam relatórios.
No meio desse cenário, enquanto levantamos a manga da camisa esperando vacina - ela está vindo, já tomei minha primeira dose, esposa duas, filhos até setembro - ou o braço aos brados na rua e de máscara esperando a cura para os males políticos, vimos surgir uma série de novos significados para antigos rituais.
Logo nos primeios meses de confinamento, o entretenimento bateu o pé, considerando-se vivo e fazendo lives. Neste primeiro momento ainda em 2020, essas lives só me faziam lembrar a “i'm alive, muito vivo, very, very happy” de Nine Out Of Ten, do álbum Transa, e sim, é o melhor do Caetano.
Este e-mail continua já, já. Antes disso, vale dar uma lida no que tem saído esta semana:
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Bom, voltando, pois é tempo de falar do áudio
Mas o tempo passou como sempre passa a despeito de nossa ansiedade por um sempre-presente e, em janeiro de 2021, um antigo-novo significado começou a dar as caras bem direto em nossos ouvidos, a incrível redescoberta do áudio ao vivo.
Nós já o conhecíamos, ele se chamava rádio e está aí desde que Nikola Tesla 1 fez os primeiros experimentos, Marconi a primeira transmissão e a Rádio Nacional, já aqui localizando a linha histórica, os primeiros influenciadores quando na época se chamavam estrelas do rádio. E acelerando essa cronologia, da rádio que era espetáculo migramos para aquela que era serviço, e do canhão da AM para o snipper da FM, para o digital e o podcast.2
Mais importante do que entendermos como a necessidade de interagir com a voz narrada se impõe desde que atribuíamos ao Verbo a essência divina3, é localizar essa discussão no tempo de hoje, à luz dessa necessidade pandêmica.
E como nosso espaço em newsletter diárias tende a ser tão curto quanto o tempo que dispomos, vão a seguir alguns apontamentos sobre impressões iniciais que têm martelado em minha cabeça desde a febre do primeiro ambiente de áudios ao vivo e síncronos que, como já disse, eclodiu no início desse nosso ano t˜ão atípico.
Por que estamos consumindo áudios ao vivo e o que isso fala mais sobre nós do que nós mesmos
Quando olhamos de forma mais atenta para o fenômeno, esbarramos logo de cara naquele que foi sua primeira estrela, o Clubhouse. Sua estética inaugurou o formato: uma timeline mais ou menos organizada em espaços, nos quais uma hieraquia se desenvolve: donos da sala chamam interlocuores para um “palco” e de "lá de cima” falam para a plateia.
A essa questão, foi acrescentada outra, que depois mostrou-se um erro de estratégia de tração: o gatilho da falta. O Clubhouse saiu inicialmente só para iOS e meio que deixa a comunidade se vangloriar nisso; e os adeptos do sistema Android só puderam baixar suas versões em abril de 2021, quando já estava fria a “trend". E mais do que isso: quando as outras plataformas já haviam se mexido.
Sim, porque surfando no mesmo espírito do tempo, vimos o Twitter trazer o seu Spaces - que parecia nadar de braçada em função de sua base de usuários e marca consolidada - e o Spotify lançar meio que de supetão do Greenroom com uma estratégia ainda mais ousada: um app stand-alone.
Ambos os lançamentos e outros menores foram fartamente noticiados pelos melhores blogs do mundo e não cabe aqui refazer esse percurso. A razão da newsletter de hoje é outra. É conseguir debater sobre o conjunto de forças que dá origem a nesse momento particular o áudio. Porque desta sincronicidade e curiosa curva de tração.
O som síncrono do tempo neoliberal em quatro pontos
A minha leitura aqui, ainda que apressada, sobre a cena dos áudios ao vivo envolve seu contexto de surgimento no capitalismo tardio. Ainda que tenha brincado com um passado conectado ao rádio, o desenho que estamos testemunhando crescer, só faz sentido no estado de coisas que vivemos hoje.
Resolvo resumir para a minha provável audiência esse movimento em um recorte específico, a estética um tanto quanto neoliberal das iniciativas de áudio ao vivo via aplicativos.
Clubhouse, Twitter Spaces e Spotify Greenroom recuperam a possibilidade de sincronia. Se perdemos o espaço - e isso acontecia bem antes de pandemia - , tratamos de recuperar o tempo. Recuperar a sincronia nos conecta com o tempo presente, até porque o futuro ficou enevoado. Isso explicaria parte da empolgação. Contudo…
… essas redes fizeram isso mirando na estética da rede social onde todas as competências são infladas, o Linkedin. Twitter Spaces menos, GreenRoom no meio do caminho, mas Clubhouse, aquele que inaugura a estética, sempre me pareceu um corredor de portas que levam a salas repletas de gurus de momento, de temas pouco interessantes ou até mesmo tatutológicos (as famosas salas explicando o porquˆê de salas…).
Até por isso - lembrem-se, tudo o que defendo aqui é que salas de áudio ao vivo são manifestões de dispositivos saber-poder4 - os apps de áudio ao vivo espelham uma lógica com cheiro de sociedade de controle, sabe? Ou ainda da filosofia neoliberal de ultra competências 24/7, a partir das quais a informação-dinheiro-rede-social comanda o controle de existências, que estimulam a formação constante e nunca quitação de dívidas com…em resumo… o TEMPO. Estamos sempre devendo ao tempo, mais tempo. À produção, maior produtividade.
Em decorrência, conduzem a criaç˜ão de uma circulação de narrativas meritocrática e não livre e construtiva. Por isso salas ao vivo espelham certa hierarquia de “alguns pensam, poucos falam, muitos ouvem”. Percebam como isso contrasta com outros constructos anteriores de conteúdo digital, como wikis e blogs. Se isso é fruto de nossa fase algortimica, de uma sociedade de vigilância é um tema interessante, porém espinhoso demais para o final conclusivo da mensagem de hoje.
Enfm, as salas de áudio ao vivo nascem dentro deste contexto, de um mundo que respira com a ajuda de aparelhos, sendo eles plataformas que trituram identidades (sempre presente o filme Zero Theorem5, de Terry Gilliam nos ajuda a entender essa alegoria). Fazem isso sob a capa de um ambiente comunitário mas não são. São espelhos de uma hierarquia meritocrática, focada em concentração de direito a voz.
Ainda analisando. Mas queria tecer esses comentários iniciais para debatermos.
Agora, é com vocês.
Se você pensa em carros elétricos ao ouvir falar de Tesla, precisamos conversar. Sugiro a leitura do artigo: “The Rise and Fall of Nikola Tesla and his Tower”
O pesquisador Luis Artur Ferrareto tem extensa obra sobre essa jornada histórica.
Tá lá em Gênesis, por exemplo: 1 No princípio Deus Criou o céu e a terra. 2 A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus se movia sobre a superfície das águas. 3 Deus disse: “Faça-se a luz!”
Para entender um pouco melhor sobre isso, é só dar uma relida em Focault. Citando aqui: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposiç˜ões filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos” (Foucault, 2000, p. 244).
Dá uma lida na resenha que fiz sobre o filme na época aqui neste post.