Comercial de iPhone 13 é deboche puro e outras aproximações de nosso presente plataformizado
Uma peça que deixa clara uma agenda onde precarizar é normal, aspirar é inócuo e suplantar o indivíduo é mandatório.
Vivo em um posto de fronteira que tem uma característica muito peculiar: dependendo da direção de onde você vem, não tem a noção exata do que está de outro lado. É um efeito de ilusão cognitiva chamada neoliberalismo.
Para ficar claro e mais uma vez reafirmar a vocação desta newsletter que de quando em vez brota aí em sua caixa postal, o posto de fronteira tem, na verdade, três linhas demarcatórias, a saber: a tecnologia, a comunicação e a cultura.
É um local simples, apenas um quartinho elevado, com alguma literatura consumida e outras tantas a devorar, certa experiência em observação de fenômenos comunicacionais e nenhuma autoridade para permitir ou impedir a circulação daqueles que, por força de seu fazer profissional ou pessoal, resolvem transitar pelas barreiras impostas por nós mesmos. Que são as mais difíceis de transpor, cabe observar.
Mas, vez ou outra, um elemento destoa, seja por seu brilho em comparação aos contemporâneos, seja por seu ineditismo ou, até mesmo, sua desfaçatez. O caso de hoje, é desta terceira categoria. Mas muito bem poderia ser de quinta.
Falo da peça audiovisual acerca do iPhone 13, o novo smartphone da Apple que em alguns modelos é comercializado por mais de R$ 10 mil reais. Abaixo, sua versão no YouTube:
O que não deu para ver mas estava na sua cara desde o começo?
Abro esta edição falando de ilusão cognitiva não à toa. Porque o nosso tempo é regido por esse mantra, arrisco a dizer mais fortemente a partir de 2008. É por esta época que se dá um passo definitivo em uma rotina de financeirização intensa de nossa vida e cotidiano. Sim, tem a ver com a crise da época, não ela não começou ali. Papo longuíssimo. Me chama no Telegram que eu explico.
Para resumir, partimos de alguns parâmetros conceituais de “auto empreendedorismo” e de "narrativas de sucesso” para vender uma certa ilusão de meritocracia e equidade que jamais poderá ser comprovada na prática. Para que funcione, então, aqueles que controlam narrativas se propuseram algo ousado: por que não subverter a prática?
É aqui que você escolhe o lado da fronteira que quer ficar, tá? E isso não tem a ver com estar certo ou errado, pelo amor…não sejamos tão inocentes. Não pega bem. É cringe. Tem a ver com ter visibilidade do espírito do tempo em que se vive. Eu optei, por força de minha pesquisa atual, a ocupar o lado de quem tenta desvelar (tirar o véu, olha aí…) essas narrativas, mostrando como elas são construídas para propagar a ideia de um protagonismo possível, sem que seja.
Só neste tipo de cenário, poderíamos ter uma peça tão icônica. Ela tem valor não se enganem. É comprovação inegável da vitória atual do tal Capitalismo de Plataforma na qual todos estamos imersos.1 Duvida? Então vem comigo.
Cinco momentos para você rever no filme do iPhone 13
1. O protagonista é a mercadoria. O trabalhador precarizado, não. A primeira vez que vi essa peça tomei um susto, e olha que estou acostumado a analisar este tipo de material. A conexão dura alguns segundos, entre o título e a revelação do “estrelando…”. Mas é um tapa na cara.
2. A superpotência é representada pelos features do aparelho. Note como o trabalhador precarizado funciona como um veículo para a manifestação dos features da mercadoria. Tem um slide em uma palestra minha que eu chamo este tipo de trabalhador de “unidade computacional” do mundo atual. É uma figura de linguagem que peguei emprestada de uma cena sensacional do Cxin Liu em sua trilogia “O problema dos três corpos”, que recomendo.
Ele nos conta que em um mundo distante (que vai invadir a Terra na história) a evolução tecnológica se deu sem máquinas, sendo cada indivíduo um chip em imensas placas-mãe espalhadas pelo planeta que são acionadas quando se precisar calcular alguma coisa. Isso é de uma beleza sem tamanho, porque metaforicamente verdadeira. E, até por isso, assusta.
3. Pausa para o almoço. E para apresentar em destaque uma das mais propaladas inovações: o cinematic mode. Alguma dúvida que o almoço improvisado é o melhor momento para isso? Trabalhe enquanto eles dormem, meu filho! Coma enquanto eles pedem um lanche, querida.
4. Dados são gerados a todo o momento. Sabe aquele famoso slide que todo mundo já criou/copiou mostrando o quanto de dados são gerados na internet por dia? Coisa de antigamente. Hoje, somos geradores de dados por excelência e como precariadozinhos queridos, somos veículos para a geração de toneladas deles.
5. A minha preferida para fechar! Após um dia de trabalho incessante e mal pago - aliás, notem como a relação financeira passa ao largo da exposição - o nosso querido precariadozinho pode se divertir. E ele, decola com sua lambretinha, tal e qual a turma de E.T. Alou, Huxley, tão usando Soma aqui!2
Enfim, uma aula completa sobre o nosso atual estado de coisas.
Mas, Mauro, você está fazendo uma análise enviesada, não? Sim, provável audiência, chama-se recorte. Neste meu recorte - que não é autoral, é largamente estudado por aí nas Academias da vida - , optamos por olhar por cima da ilusão cognitiva que o nosso território aqui na newsletter inspira.
Daqui do lado de cá da fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura, aprendemos que só em um mundo como o de agora, onde vivemos uma Pandemia que concentrou ainda mais a renda, é possível criar uma peça que fala de submissão como vantagem, que vende uma mercadoria aspiracional a partir da visão de quem nunca provavelmente vai utilizá-la e faz isso na cara de todos nós, publicamente.
É pra se pensar, diz aí…
Mais conexões para a sua semana
Metaverso (esse Second Life com esteróides) e NFTs (tem a ver também com crise de 2008, siga-me para mais dicas), andam de mãos dadas. Quem já sacou isso foi a Adidas, que lançou no dia 18/11 um NFT misterioso, numa pegada meio ARG.
Já que dei uma suave cutucada no estado atual do mundo financeirizado, cabe um aparte: também daí se extrai bom entretenimento, viu? A terceira temporada de Succession, por exemplo. As aventuras da família Roy (sou do time do Logan, vou logo dizendo) em busca do protagonismo da velha mídia no mundo atual, gera uns bons insights. No capítulo que foi ao ar no último domingo (21/11) fomos convidados a uma festa privada cuja função é escolher o próximo presidente dos EUA. Mas isso não acontece na vida real não, tá?
Tá bem, chega de pensar: vai lá e dá play em Cowboy BeeBop, a versão em Live Action para o animê da década de 90 foi mega criticada. Mas se você curte retrofuturismo a estética é irresistível. Na mesma linha, você pode ainda curtir um filme que foi muito pouco assistido mas tem conexões interessantes com esse universo que é o Teorema Zero, do Terry Gilliam. Dá uma olhada nesse review aqui.
Perguntinha para fechar
Por que você ainda não está em minha lista no Telegram?
Sobre o termo, recomendo o pequeno livro: Capitalismo de Plataforma, do Nick Srnicek, disponível aqui neste link. Mas como sou um cara legal, resumi para você aqui.
Ai, ai, ai se você não entendeu a referência, hein? Tem a ver com a droga que o pessoal de O Admirável Mundo Novo do Aldous Huxley usa para se desconectar do mundo que, vejam só vocês, foi além da seleção genética e separação de classes, tendo aquelas que mandam, outras que pesquisam e ainda outras que só trabalham.