Conto de 2007. Aumento um ponto em 2022.
Acho um texto antigo que foi parar em livro da época e fala sobre como eu seria hoje. E me assusto.
Contexto antes, porque é importante. No início da primeira década do século XXI, eram os blogs os hubs do que se conhecia por produção de conteúdo na internet. As redes sociais ensaiavam seus primeiros passos e o Youtube surgiria somente em 2006. Eu era feliz e sabia.
Mesmo os podcasts, tão pioneiros e hoje populares, reuniam como força criativa em sua maioria produtores entusiastas, poucas dezenas deles, que mal enchiam uma mesona de bar em seus primeiros encontros. Tecnicamente tínhamos tijolões ou tijolinhos da Nokia com telas diminutas e monitores amarelos e cabeçudos. Os planejamentos que entregávamos para os clientes, eu começava em paredes de vidro e cadernos de notas.
(Bom, faço isso até hoje, mas vocês entenderam).
Em meio a essa cena tão curiosa, eu fazia algumas palestras junto ao pessoal do iMasters. E, tempos depois, fui convidado a colaborar com um capítulo do livro alusivo a um dos eventos, o “Internet: encontro de dois mundos”, até hoje disponível na Amazon.
Com a missão recebida, ensaiei uma indecisão interna - pura dissimulação - entre escrever um texto técnico ou produzir um pequeno conto. Claro, decidindo pelo segundo, que fala mais ao meu jeito de ser e estar no mundo.
E, de forma velada, entreguei um material que secretamente projetava para além e para dentro: era ao mesmo tempo um estado de coisas, um registro dos desafios de então e um “envisionamento”, uma carta de compromisso para comigo mesmo sobre onde queria estar como produtor de conteúdo dali a 15 anos.
Eu reli este texto na última segunda-feira, quando decidi enviá-lo para uma profissional que começa agora, promissora e cheia de novas e frescas ideias. Ao reler para consertar qualquer escorregão que a revisão tenha deixado passar na época, me deparei com um detalhe curioso. O prazo “no futuro” que eu desenhara no texto vence ano que vem, em 2023.
Minha reação foi tão curiosa que resolvi compartilhar parte do texto com vocês, minha provável audiência, como um retorno curioso ao ritmo de nossas publicações semanais depois daquela data que não existiu mas que para todos os efeitos foi chamada de Carnaval.
Que carta você teria escrito para você mesmo há 15 anos? Ela valeria hoje? A minha segue valendo. E queria dividir com vocês. Vamos lá.
Filtro, logo existo
1.
Ele acorda correndo, logo depois que seu assistente pessoal o desperta com a música agendada no dia anterior. Embora tenha investido na qualidade de vida nos últimos anos, o que o levou a trabalhar de seu home-office numa cidade serrana do Estado do Rio de Janeiro, a rotina não deixa de ser agitada. Sua estação de trabalho, espalhada pela casa inteira através de monitores sensíveis ao toque, já aponta as tarefas de um dia que começou há algumas horas atrás, quando do outro lado do planeta, seus contatos em Pequim solicitaram um primeiro “cut” num documentário que ele roteirizou.
Mas isso teve que esperar. Ele precisa dar uma olhada nos blogs que comanda. Seus colaboradores enviaram os posts durante seu sono. É assim o combinado. Abre um em cada monitor e avalia. O primeiro tem um pequeno problema de consistência no segundo parágrafo. Comenta, envia e agenda o retorno dali a três horas. O segundo e o terceiro foram aprovados e publicados na mesma hora. O quarto foi criado através de dois agentes semânticos que ele programou para compilar links sobre a regravação de um álbum dos Mutantes que, até hoje – estamos em 2023 - , continua fazendo sucesso, normalmente entre os ingleses. Em dois minutos, estarão lendo, comentando e comprando através dos programas de parceria que ele estabeleceu com as três maiores lojas de música online do Reino Unido.
O quinto post...uma pena...não deu nem pra saída. Era uma nova aposta em um autor americano que ele conhecera havia dois meses em um evento da indústria de games. Era um teste, ele não passou. Não há muito o que fazer: posta um anúncio para a vaga e manda rodar mais um agente semântico que vai replicar a proposta no Brasil, nos EUA, na Europa, Ásia e Oceania. Até o final do dia deve ter cinco ou seis excelentes candidatos para entrevistar. O que não deixa de ser uma eterna aposta num futuro talento.
2.
Sim, os chineses, não nos esqueçamos deles. Estão quicando...querem por que querem ver o primeiro “cut” do documentário. Ele teve a idéia para o roteiro em sua última viagem de férias quando viu professores voluntários em regiões de risco ensinando jovens a fugirem do ciclo vicioso que os levaria à marginalidade e crime, através da criação de games de realidade alternativa, comercializados para o mundo todo. Ele enviara cópias do roteiro para as principais cooperativas de produção (os estúdios haviam acabado há uns 5 anos. Agora, quem quisesse produzir seu próprio filme, documentário, série enviava sua cópia para uma dessas cooperativas e esperava a votação de seus usuários. Investidores ficavam apenas esperando que os roteiros com melhores notas fossem aprovados por esta comunidade de pré-críticos para, com maiores chances de sucesso, iniciarem a produção) e em menos de dois meses os tais chineses já haviam comprado os direitos. A grana foi boa, a projeção profissional melhor ainda. Tudo estava indo às mil maravilhas não fosse um pequeno problema (na verdade, uma excelente notícia) com o profissional que iria “montar” a primeira versão do projeto: uma proposta irrecusável para coordenar uma dessas mesmas cooperativas. Enfim, coisas do mercado global.
Agora, em meio ao processo de achar outro colaborador, ele precisava cozinhar os patrocinadores por mais três ou quatro horas.
Por falar em cozinhar, chega a hora do café da manhã e uma corrida em sua trilha preferida. Como desde muito tempo cedo ele aprendeu que o trabalho vai muito melhor quando se diverte com ele, nos ouvidos coloca três podcasts, com temas tão variados como complementares em sua carreira: as revelações do jazz, culinária pós-contemporânea e aquarismo. As idéias correm soltas e a temperatura agradável ajuda a ter algumas idéias que pretende rascunhar quando voltar. Aliás, meu Deus!, já está na hora de voltar. Faz o último quilômetro da trilha num ritmo mais acelerado pois tem uma reunião em 20 minutos.
É que já está começando sua reunião semanal com o conselho de analistas de tendências globais de comunicação. Explico: profissionais que se especializaram em monitorar, avaliar e projetar cenários relativos a este mercado são contratados para anteciparem idéias, conceitos, marcas, produtos, personalidades...que no mundo de produção constante de conteúdo, podem surgir em um pequeno bar em Singapura, num grande escritório em Londres ou...na própria cabeça dele mesmo. Aconteceu com um amigo na Índia que lançou um boato que agentes semânticos estariam desenvolvendo uma mutação que os faria perder a identidade e trazer conteúdo tendencioso para seus editores. Era tudo balela, o cara perdeu a cadeira no conselho, sua reputação e hoje vive de publicidade paga. Uma pena.
E seria também uma pena se, na hora da verdade, ele não entregar o “cut” do documentário. Ele sabe disso e por isso vai dar uma olhada nos resultados da seleção que iniciou há uns dois dias. Nada. Apenas dois estagiários. Não vai dar. É hora da decisão. Esperar e correr o risco de não encontrar quem precisa, perder o patrocínio e, provavelmente, tudo o que conquistou até aqui ou simplesmente resolver a situação da única maneira viável?
3.
Ele escolhe a única maneira viável, obviamente. Não há barreiras ou limites para profissionais que decidem aprender uma nova habilidade. “Agente Um: Técnicas de narrativa aplicadas a arte do documentário no monitor dois, por favor”. “Agente três: compile o material captado até hoje. Restrição: um copião só com as imagens onde a luz e o som estavam, pelo menos, a 80% da qualidade ideal”. “Agente dois...uma lista com dez sucessos da New Bossa, equalização como da última vez, por favor”.
Quatro horas depois, o primeiro “cut” está pronto. Não é um trabalho profissional, para ele, teremos que achar ainda o tal colaborador e mesmo ele ficará debruçado uns dois dias sobre o material até chegar a um formato mais próximo do final. Mas para a apresentação, que tem como função evangelizar os patrocinadores para a causa, vai servir.
A décima música termina com um solo de um maravilhoso piano Rhodes de uns 50 anos pelo menos, recuperado por um dos artesãos mais famosos da França...coisa fina. Já são quase cinco horas da tarde...a chuva começa a cair.
O som característico da chamada da sala de videoconferência preenche o escritório. Os chineses estão chamando.
Hora do show.
Pós-texto
Trabalhar de casa, temer a China, fazer video-conferências durante todo o dia. Onde eu estava com a cabeça quando pensei nisso tudo? Estava no Agora.
E essa foi a minha estranha reação: me parece que eu sempre estou no agora de muito lá na frente. Acreditem, se posso deixar algum ensinamento para todos que chegaram no cenário das esferas produtivas, ou na tríplice fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura: isso não é lá tão bom quanto parece.
Depois de tantos eventos, planos de negócio, startups, clientes, faturamentos, bolas de neve que demorarei para resolver, a constatação é um tanto quanto perturbadora.
Ser assim é um chegar atrasado ao contrário. É como perder um encontro consigo mesmo. Sempre e sempre.
Não sei se foi rever uma inbox de 2007, as fotos de um tempo que nem mais lembro, ou o fato de ainda enxergar utilidade em minha experiência, não sei mesmo.
Só sei que estou no aqui, no agora, ainda mais pensativo.
Mauro, primeiramente, que honra ser citada aqui. Mais cedo essa semana, reli esse texto pelo menos 2x enquanto enquanto te escrevia um textão de resposta por ter compartilhado comigo. Projetando tudo que senti, tudo que mexeu aqui dentro. Não cheguei ainda a te enviar, mas vem aí 👀
Hoje li mais uma vez e senti novas faíscas. Como é bom quando isso acontece, né? Não tem sido tão comum mais..
Bom, vim comentar não só porque sei o quanto é importante a interação nos tempos atuais etc e tal… mas também para pontuar como achei genial e singular tudo que esse texto envolve. O fato de você assinar o texto com perspectivas de 15 anos e se passarem 15 anos pra você ter contato com ele novamente, a previsão (podemos chamar assim?) de itens by demand no mercado, o que isso significa positivamente e negativamente, a quantidade absurda de conteúdos que consumimos hoje - 3 podcasts ao mesmo tempo 🤭, as reuniões, o fluxo… Para mim, poderia facilmente ser o roteiro de uma das animações de Love, Death and Robots - vale conhecer.
E é isso, minhas efervescências em carreira estão a mil, não teve um dia dessa semana que não pensei nisso, mesmo sendo uma das semanas mais intensas de demanda dos últimos meses. Inquieta. E inquieta de uma forma que não ficava a tempos! Obrigada por isso. 🖤