Eram sete e oitenta [sexta-republicada#2]
Nota do escriba: agora, toda sexta-feira a ideia é trazer para vocês textos de outras épocas, sem qualquer ordem ou preferência. Publico nas webs desde 2003 e já tem umas boas páginas por aí. A ideia é ir concentrando aquelas que são atemporais por aqui. A de hoje, uma situação vivida ali no Centro do Rio em meio às minhas andanças enquanto planejador digital na época dos Jogos Olímpicos ocorridos na cidade, em 2016.
Aproveitou-se da minha distração, olhando para o celular enquanto esperava a atendimento chegar para mais uma reunião no prédio ultra-corporativo, sede do cliente, no centro do Rio de janeiro, e disparou:
Está fazendo um post?
Olhei e tremi. Deveria ser mais alto do que eu, já beirando a terceira idade e ainda forte.
Olhos azuis, semblante maltratado pelo tempo e pela experiência, esta que o auxiliou a ler meu espanto e medo de ter meu velho iPhone 4S roubado.
Calma, sou do bem. Aperte minha mão.
Ok, pensei. Adoro conversar com loucos, sempre dei atenção. Apertei a mão e respondi com o que me veio à cabeça:
Então empatamos, eu também sou do bem.
Deixa eu te falar, rapaz — emendou. Trabalhei durante 20 anos em Postos de Gasolina, mas, com 59 anos, sabe como é, né? Ninguém quer mais empregar. Daí, meu filho, que entende de computador, imprimiu meu currículo, 3 páginas. 100 cópias, ou seja, 300 páginas. Eu distribuí em todos os bairros que tinha conhecidos, Catete, Glória, Flamengo… tudo a base do café.
Quer comida, me viu aqui perto de um Rei do Mate, quer um joelho ou uma coxinha. Vou pagar, pensei.
Mas eu não quero comida, não. Quero apenas que me intere a passagem para voltar para a baixada.
É mais caro pra lá, né?
Sete e oitenta
Catei no bolso, tinha uma nota de 10, três de dois e cinquenta na carteira.
Pra você não dizer que estou agindo de má fé, esse aqui, os 10, são para eu voltar, eu te dou os seis.
Maravilha, já quase completou o valor todo, muito obrigado.
E teria terminado ali, fruto de estelionato ou não, mais um dos centenas de diálogos parecidos que devem acontecer só na Praça Mauá.
Acontece que a nossa história começa aqui. Ele respirou fundo, buscou lá no fundo dos meus olhos a atenção que esperava e disparou:
Eu já fui representante comercial da Kodak, sabe? Vendia filmes para catalogação de documentos. Íamos acabar com as pilhas de documentos em empresas. E não tinha esse negócio de comissão, não. Era salário fixo e ainda pagavam a minha moradia
Que beleza, hein?!
Me olhou desconfiado, com a antiga persona mais abonada já se manifestando:
Que nada, tive que ir morar em Juiz de Fora, tem noção? Mas aí, veio a onda digital e os 15 anos que dediquei à empresa foram para o ralo. Fui demitido. Assim que fui parar nos Postos de Gasolina, que foi o que pintou. Mas a Kodak foi o meu momento áureo.
“Momento áuero” disparou meu alerta de pessoas interessantes na hora. Daí me toquei que todas as concordâncias estavam certas, que a escolha de palavras era precisa, que o ritmo era perfeito. O cara realmente estava falando a verdade. Era um ex-alguma coisa, na casca de um futuro quase-ninguém.
Olhou para o chão, quis chorar.
Uma vida de altos e baixos. E você, trabalha com o quê?
Olha, é meio complicado de explicar, digamos que é com Marketing Digital e Planejamento.
Um propagandista!
Na hora me vi com uma mala 007 na mão e um terno xadrez.
É, quase isso.
Uma área com muita grana. Mas…sabe como é, né?
Tremi.
Cheia de altos e baixos. Bom, deixa eu apertar sua mão novamente, preciso ir.
E foi. Me deixando com a única reação possível: olhá-lo caminhar por entre as pessoas para ter certeza que tinha forma e consistência e não era uma alucinação premonitória que ia se desfazer no ar. Não era, felizmente.
Passado o susto, um estalo e um palavrão bem alto
Putaquepariu. Eu tinha que ter gravado a história desse cara.
Uma coisa importante
Este acontecimento foi o que disparou em mim a vontade de criar um projeto centrado em narrativas pessoais não lineares que eu fosse coletando e lançando no formato podcast. O umapessoapordia.com.br já está no ar. Já temos os primeiros entrevistados. Mas quero que você participe.