NFT pode não ser nada disso que você está pensando ou lendo sobre
A relevância do conceito representado pela nova buzzword está no entendimento (e possibilidade) de construção de contextos em relações sociais no digital.
Por onde você andar hoje, você vai esbarrar com essas três letras: NFT. O acrônimo para non-fungible tokens (tokens não fungíveis) representa o tipo de artefato digital que fala exatamente a língua de nosso tempo: a da normalização.
Se não vejamos: poucos entendem o conceito além da página 2, muitos querem entrar de qualquer forma no hype e outros já montaram cursos online com a pegada coach quântico para levar você para este mundo incrível a partir de suaves mensalidades, sendo o conhecimento oferecido por este intermediário disponível depois de algumas buscas gratuitas no Google.
Tempos difíceis para quem se preocupa com o andar do mundo e paradoxalmente de vida fácil para alguns: todos os dias nasce um otário e um vendedor de cursos sobre NFT.
Mas a edição de hoje não é sobre essa tendência que não nos abandona desde os tempos do conto do vigário. Tem a ver muito mais com a última palavra do primeiro parágrafo. Mas antes, vamos entender melhor o... contexto.
O que você já deve ter lido sobre NFTs
Eleita a palavra do ano pelo dicionário Oxford, é muito difícil que você, provável audiência deste projeto aqui e por isso com interesse diferenciado por tudo aquilo que brota da tríplice fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura, não tenha entrado em contato com a definição normalizada das NFTs.
Aposto que você leu que se trata de um novo protocolo de transação financeira envolvendo um determinado código de propriedade que, com algumas regras determinadas por seu criador, dá acesso a artefatos digitais e alguns direitos decorrentes deste contrato.
E que, hoje, está reinventando o mundo da arte digital, permitindo que criadores ao redor do planeta, alguns com menos de duas dezenas de anos de idade, levantem pequenas fortunas em pouquíssimo tempo.
Diria mais: se você tem relação com o pessoal de economia ou finanças, poderá até mesmo ter ouvido no almoço de domingo que “NFTs existem com a única função de lavar dinheiro, além de serem pirâmides financeiras, claro”.
Tudo bem. Não se assuste pois esse é o percurso normal de uma notícia (e algumas não-notícias também) no mundo plataformizado de hoje: conteúdos sobre a maior novidade de todos os tempos da última semana que circulam em tempo tendendo a zero e que são normalizados ao extremo. Sendo mais detalhista, dá até para mapear esse percurso em mais ou menos seis momentos:
Conceito circula entre determinado grupo de early adopters que são, essencialmente e em alguns casos involuntariamente, produtores de conteúdo;
Conteúdo produzido por eles é disseminado em canais um pouco (só um pouco) mais abrangentes que são consumidos por uma audiência com velocidade de aquisição secundária;
Este movimento gera FOMO neste grupo, o famoso medo de estar perdendo alguma coisa. Este sentimento potencializa sua adoção, produzindo ainda mais conteúdo: reflexões, posts, a própria NFT e sua divulgação etc;
A mídia tradicional, que consome sobretudo o pessoal de segundo momento, entende que ali tem um fato social ocorrendo - na velocidade típica de nosso tempo - , e que é o momento de ganhar alguns cliques para os seus respectivos pay walls. Mas como fazer isso? Como mastigar a papinha para o seu grande público?
Entra em cena a caneta normalizadora do jornalismo padrão, reduzindo a elementos práticos e mais imediatos e, o mais perigoso, tecendo falsas relações de causalidade entre aspectos que sequer são relacionados. Exemplos: “NFTs são GIFs que podem chegar até um milhão de reais”, “Jovem de 15 anos cria NFTs de baleias e já é milionário” e…
…um cidadão médio que ainda estava tentando entender por que o WhattsApp e o Telegram são tão perigosos para a democracia, acorda um belo dia e descobre que tem que fazer uma coleção de NFTs. "Daytrade é o cacete", pensa ele. Agora vai.
Vai. Mas vai para para outros caminhos: a normalização por essas vias tortas do ultra-compartilhamento de informação sem critério. Rende clique e muita confusão desta turma muito louca, como já vimos acontecer desde 2016, podendo com suave esforço intelectual traçar uma linha de Cambridge Analytica até a invasão do Capitólio dos EUA em Janeiro de 2021.
(Pausa para respirar porque esse texto que normalmente escrevo de uma sentada só na terça-feira antes do lançamento está quase saindo dos trilhos.)
O que não estamos entendendo sobre NFTs, então?
Outro dia mesmo em um grupo muito brabo de pensadores de comunicação digital, debatíamos que grande parte do que se lê sobre novidades no mundo do digital (falamos dÍgital porque somos descolados…) e que vai nos assombrar nos próximos cinco anos tem uma característica importante, ou melhor dizendo, um tipo de comportamento que desperta em seu público. Eu sintetizei assim:
Quem não vai em busca dos porquês é um eterno escravo dos “comos”
A normalização a que me referia e que parece envolver todo o discurso acerca das NFTs é uma fábrica de COMOs. Como fazer sua NFT, Como vender a sua NFT, Como investir em crypto a partir de NFTs, Como fazer o meu curso de NFTs e entrar na onda.
O "Como” é a nova pílula de SOMA que nos mantém distraídos neste eterno Cinema Sensível em que se transformou a realidade mediada por algoritmos e suas Big Techs.1
Mas e se pudéssemos encarar toda essa cena das NFTs de forma um pouco mais aprofundada e direcionada para os porquês deste movimento? Isso sempre me deixava com várias pulgas atrás da orelha, aquele sentimento de “tem coisa aí que a galera não está vendo” ou “o que não estão nos contando?".
(
Parêntesis: é claro que tem toda a cena da financeirização pós-2008, é claro que tem a fome de dados das plataformas neoliberais, é claro que tem toda essa coisa com a qual estamos lidando. Mas não é sobre isso que queria dizer, é sobre o DNA de toda essa onda mesmo.
Bom, voltando…
)
Foi aí que eu esbarrei no excelente artigo de Venkatesh Rao da RibbonFarm Studio, uma newsletter aqui no Substack que eu aconselho que vocês assinem tão logo terminem a leitura desta aqui.
(mas terminem esta aqui, sério, estudei um bocado para gerar este conteúdo)
O autor, que tem passagens pela Universidade de Cornell e Xerox, nos propõe uma outra abordagem: a criação de novos modelos mentais que nos permitam entender de fato o que vem a ser uma NFT, calibrando a nossa percepção para a realidade que ela ajudará a construir.
Pronto, estava aí uma abordagem focada nos “porquês”. Finalmente.
Como eu sempre estouro o limite de caracteres aqui em cada edição e não quero fazer o mesmo com a paciência da minha provável audiência, aí vai um resumo pontual para funcionar como um guia de leitura bem simplificado.
O artigo é repleto de metáforas bem interessantes que envolvem o debate sobre o conceito de propriedade e direitos sobre artefatos gerados a partir de economia criativa e de como eles se comportam nestes novos contextos sociais. Mais do que isso: que existem SOMENTE dentro do conceito de contexto social;
O universo que se constrói a partir dos modelos mentais propostos dão conta de situar as NFTs como um objeto social capaz de nascer e moldar estes contextos sociais;
Elas nos dão o direito de representar uma coisa, de fazer coisas com outras coisas e até mesmo o direito de aguardar alguns comportamentos de certa tendência especulativa (financeiramente falando). Ela cresce de valor ao mesmo tempo que aumentar o seu potencial especulativo.2
Na categoria de objetos sociais, as NFTs não pertencem a uma plataforma ou a um jardim cercado, não estão relacionadas à tecnologia desenvolvida pela empresa X ou Y, nem mesmo um padrão aberto;3
Somos apresentados ao diagrama abaixo, no qual uma matriz 2x2 é utilizada para posicionar as NFTs em relação às variáveis opostas de Substância/Impermanência e Promiscuidade/Não promiscuidade. No canto extremo superior direito, NFT enquanto modelo mental seria uma “coisa” que uniria sua não substância à habilidade de ser tratada, transferida, mixada e misturada de forma indiscriminada dentro de seu contexto social.4
Em uma abordagem menos financeira, o autor nos lembra que NFTs são também fruto de trabalho criativo e que, por isso, só atingem seu máximo potencial de expressão quando interagem com o seu contexto social. O trabalho realizado por uma NFT é o de, portanto, criar e embarcar este contexto.5
Próximo ao final, Venkatesh nos propõe um novo olhar para os direitos inerentes a artefatos digitais, lembrando que quanto mais inteligente for um artefato, menor é a porção de direitos correlatos à sua posse física. Daí o fato de NFTs não atribuírem peso à posse, o que, dentro deste modelo mental, destruiria possíveis direitos futuros. A missão delas é justamente criar um ambiente mais rico para o cálculo dos direitos digitais, centralizado na “sociabilidade” do artefato no lugar de sua posse.6
Em uma metáfora bastante poderosa, o autor nos pede para imaginar uma torre de apartamentos, propondo que NFTs poderiam ser entendidas como uma escritura que é também uma chave. A partir dessa união de “poderes” ela dará direito a construção de infinitos contextos sociais onde circulação, uso e benfeitorias podem ser negociados.
Ou seja: o potencial mais interessante de uma NFT é essa capacidade de GERENCIAR DIREITOS não a partir da posse mas do contexto social.
Web2 x Web3 ou: é aqui que Markito torce o rabo
Um dos pontos mais elucidativos, um residual de entendimento se assim preferir, é que embora prometam todo um novo mundo, os modelos mentais utilizados para explicar o potencial das NFTs em certa maneira se rivalizam com o status quo digital .
Isso porque o foco em contexto social que as NFTs trazem carregam um potencial muitas vezes superior do que o das próprias redes sociais da forma como são construídas. Ainda que possamos alegar que qualquer artefato pode se arvorar a ser uma rede social, a proposta futura é muito mais rica.
Isso porque se é verdade que uma rede social como Instagram ou TikTok hoje já operam dentro de uma lógica de contexto social (o que é bem aceito em uma ou em outra, o que faz gerar mais engajamento em termos de conteúdo, como se ganha moedinhas nas lives etc), é também verdade que NFTs foram criadas para gerenciar contextos de forma mais ampla.
Ou seja: se uma rede social gerencia um tipo de contexto, NFTs podem ser utilizadas para gerar contexto ENTRE DIFERENTES tipos de contexto. A frase que sintetiza isso no artigo e que para mim é matadora, ficando aqui no original, é esta:
Just as the internet is a “network of networks,” a blockchains is a “context of contexts."
E é aqui, provável audiência, que um choque de visões de mundo se coloca. Nos últimos 10 anos criamos toda uma casta de bilionários que sentaram em cima de códigos e práticas de negócio, além de legislações nacionais e internacionais, com base nesta gestão de contexto único.
Facebook, Twitter, Instagram e também Uber, AirBnB e iFood são plataformas que nascem de um contexto especial específico e que nele organizam regras mais ou menos baseadas em modelos mentais de posse (ainda que garantam acesso a outros bens).
Quando essa “pororoca” de visões de mundo acontece, o que temos visto até agora é um grande movimento de adaptação de discursos. Para resumir aquilo que possa ter soado deveras encriptado é como se estivéssemos o tempo todo vestindo a Web2 (a dos cercadinhos e contextos únicos) de Web3 para justamente, deter possíveis riscos às fortunas estabelecidas até aqui.
E tome Metaverso para o qual não se tem tecnologia, modelos de negócio baseados no entendimento limitado das NFTs e especulação à lá pirâmide financeira dos conceitos que incansavelmente tentei demonstrar aqui.
Fica a questão:
Quem são os poucos que ganham quando todos não entendem o potencial para que muitos ganhem?
Corre o risco de ser uma pergunta retórica.
Vocês me conhecem, bobeou cito Ficção Científica clássica. Esta no caso, de “Admirável Mundo Novo”, de Aldos Huxley. Soma era uma droguinha liberada para manter a galera desligada.
Do original: “Or in other words, the right to represent a thing, the right to do things with a thing, and the right to expect certain things in speculative environments. These mental models correspond to a scale of increasing value and increasing speculativeness.”
Adaptado deste trecho original: “NFTs clearly belong in that tradition. They are digital social objects. Except they are a lot wilder. They don’t live within particular platforms or walled gardens, and aren’t attached to a particular company’s technology or even a specific open standard.”
O texto original: "So the parsimonious mental model of an NFT based on what we’ve discussed so far is that it is a promiscuous and vacuous digital social object. A thing that contains no substance itself, not even reliable pointing properties, but has an identity and can be traded, transferred, mixed and matched indiscriminately with other things in a social context.”
Direto do trecho original: “Or to put it in less financial terms, a creative work is a creature of context, and it can’t really achieve a full expression of itself unless it can fully interact with its context. The job of an NFT is to create and embody this context.“
Trechos do original reunidos para dar o contexto desta passagem: “The smarter an artifact, the smaller the fraction of rights associated and defensible with, and unlocked by, physical possession.
NFTs don’t assign any digital rights because rights as they currently work are too much of a blunt instrument, thanks to be rooted in notions of physical possession. To the point where asserting and assigning some rights legibly might actually destroy less legible future rights. NFTs aim to create a much richer calculus of digital rights — one centered on the sociality of objects rather than physical possession.”
O texto nem tinha esfriado e amiga querida me enviou isso aqui:
https://twitter.com/kerissakti/status/1488457860124069889
Eu penso (sem lamento) que as redes sociais poderiam ter feito mais pelas NFT's.