Podcasts: tudo o que você nunca ouviu sobre
E no mais, bom Carnaval e até semana que vem
Tá, eu sei: ouvimos muito sobre podcast entre 2018 e ontem. Eu até identifico um ou outro movimento de desaceleração, ainda que incipiente, no interesse da mídia dita especializada. Não porque essas narrativas em áudio tenham deixado de entrar pelos ouvidos de uma audiência cada vez maior. Mas por que a gente não debate sobre aquilo que já é costume, ou pelo menos não cria títulos clickbait com isso.
Só para dar um exemplo: você não lê algo como “Pessoas passam manteiga no pão da direita para esquerda, aponta estudo”. Por que independente de sua origem, opinião ou inclinação política, as pessoas continuarão a passar manteiga no pão. E já comentamos semana passada que é sempre melhor terminar na esquerda. ; )
(menos eu, que detesto manteiga, longa história, outro dia eu conto)
Mas o fato é que pingou aqui em meu e-mail e InoReader (obrigado Carol Mancini) que o Spotify mais uma vez foi às compras. A bola da vez foram os serviços de estatísticas Podsight (mais focado em mídia paga) e o Chartable (que monitora a subida dos programas nos rankings mundiais).
Em artigo para o The Verge, Ashely Carman detalha os bastidores dos acordos, sinalizando que se de um lado a Podsight melhora a tecnologia envolvida na entrega de mídia por parte do Spotify (na palavras da própria plataforma), por outro não se sabe ao certo o futuro da Chartable ao embarcar - ou ser abduzida - pela nave-mãe das narrativas sonoras.
O fato 1 é que não foram as primeiras aquisições e não serão as últimas. E o fato 2 é que não estamos aqui para os “comos” e sim para os “porquês”.
Daí que resolvi revisitar uma abordagem conceitual bem relevante para este tipo de momento e movimento. E que pode ajudar você a entender - ou desconfiar do que está por trás - de notícias como essas. Vamos lá?
Ah, paradinha técnica para relembrar que se às quartas-feiras tem newsletter e nas sextas temos vídeos (ou até antes, estou pensando em antecipar para dar tempo de vocês comentarem antes de desligar tudo e viver o final de semana), é no DURANTE que essa comunidade fica ainda mais interessante.
Como? Debatendo o que brota da tríplice fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura em nosso servidor no Discord. Só vem !
“As três grandes submissões do Podcast” foi um pequeno ensaio que produzi para uma das matérias do meu Mestrado. Aqui, para efeito de nossa newsletter, submeto uma versão reduzida. Mas, estarei lá no Discord se quiserem debater sobre, combinado?
Bom, mas vamos lá, como essa história começa?
A primeira submissão: protocolo RSS como origem e única forma de entender o podcast
A definição de podcast mais utilizada em seus primeiros momentos viria de sua tecnologia de transmissão, o protocolo RSS (Real Simple Syndication) aprimorado por Adam Curry a partir do trabalho inicial de Kevin Marks, que garantiu a base técnica para encapsular arquivos de áudio a serem lidos pelo agregador do iTunes sem que fosse necessária a consulta a um site por parte da audiência.
Vale lembrar que só pode ser considerado podcast nesta fase as peças de conteúdo que trafegam entre seu emissor e seu receptor a partir da utilização do protocolo. É daí inclusive que vem o seu nome, batizado pelo jornalista Ben Hammersley em 2004, em artigo seminal publicado no The Guardian, justapondo as palavras iPod e Brodcast.
Interessante notar que esta primeira submissão a uma grande plataforma, embora tenha possibilitado tecnicamente o surgimento do podcast, contribuiu para que sua abrangência seguisse ainda tímida, restrita a um público de entusiastas.
O fato é curioso porque o nascimento do protocolo RSS se deu, sobretudo, a partir da dificuldade de transitar arquivos de mídia mais pesados que, à época, encontravam barreiras técnicas em trafegar em um mundo onde banda larga, 4G e 5G eram apenas conceitos teóricos sem aplicabilidade comercial.
Para entender como a jornada desse primeiro momento de submissão encontrou outros dois, temos que revisitar alguns acontecimentos a partir dos quais o podcast começaria a trilhar o caminho que o transformaria em um meio massivo.
A segunda grande submissão: podcast enquanto meio massivo, mas que ainda conecta diretamente produtores e audiência
Este momento, que marca também a segunda grande submissão a uma plataforma, pode ser didaticamente localizado no tempo e no espaço a partir de uma soma de fatores.
Novas linguagens foram chegando ao formato, novos e relevantes produtores reinventaram a natureza comercial dos podcasts e mais do que isso, o olhar acerca de sua definição começou a se ampliar em direção a uma abordagem mais relacional.
Quando deixamos para trás o otimismo exacerbado do início dos anos 2000, quando por exemplo a produção de podcasts era entendida como uma espécie de "forma mais democrática de radiodifusão”, abrimos espaço para outro tipo de plataforma relacional a qual produtores de podcast submeteram suas estratégias de produção e circulação de conteúdo sonoro.
Dessa vez, a dos modelos de negócios, das startups, dos empresários de si mesmos em que produtores de podcasts transformariam.
Esta segunda grande submissão dos podcasts e seus produtores começa a se manifestar a partir da migração profissional de equipes da NPR (National Public Radio), a rádio pública americana, que começam a criar podcasts primeiro em sites próprios e depois fazendo uso dos primeiros aplicativos dedicados, como iTunes e PocketCasts.
Com metodologia e experiência comprovada e perfis criativos variados, trouxeram uma estética esmerada de produção, a do jornalismo narrativo.
Um bom exemplo dessa fase é o caso do produtor Roman Mars, criador do podcast de design e arquitetura 99% Invisible. A partir da lógica do financiamento coletivo recorrente, Mars conseguiu ir além dos produtores da época: buscou apoio para não apenas UM novo programa, mas para uma rede deles, chamada Radiotopia.
Uma das inovações da iniciativa era trazer também publicidade programática, ou seja, inserida automaticamente, para seus programas afiliados, conjugando dois dos métodos mais comuns de financiamento de produtores independentes.
O movimento seria acompanhado por outros entusiastas do meio e, em 2015, já tínhamos números que atestariam o interesse por este formato de monetização: à época, dos 35 projetos de podcast na plataforma Kickstarter, 57% atingiram pelo menos 75% de suas metas.
O segundo exemplo, sem o qual qualquer pretensa arqueologia evolutiva do podcasts não faria sentido, é o podcast Serial. A produtora do programa Sarah Koenig (também egressa do time da NPR) criaria uma narrativa envolvente que buscava refazer a reinvestigação de um crime ocorrido nos EUA em 1999 e, já em sua primeira temporada, foi elevada ao status de celebridade do podcast.
É o primeiro blockbuster real do formato, com direito a presença em programas de entrevista e o último episódio daquele ano batendo 70 milhões de downloads. O desdobramento mais recente da empreitada: o passe de Sarah e sua produtora foram comprados pelo New York Times por 25 milhões de dólares em 2020.
Os movimentos retratados foram de vital importância para o que poderíamos chamar de normalização do consumo de podcasts. Tanto o estabelecimento do protocolo de transmissão RSS como a chegada das equipes vindas da NPR com sua estética de jornalismo narrativo, culminaram na apresentação de um trabalho mais esmerado ao grande público. Mais do que isso: um público renovado, conectado e ansioso por compartilhar as suas descobertas.
Se no recorte da audiência, vemos mais e mais pessoas chegando, ou seja, podemos notar aos poucos o podcast sair do nicho (ou de seus nichos) e atingir parcelas maiores do público comum, é na camada da produção e de sua comunidade que a movimentação se mostra ainda mais intensa.
A crescente associação destes produtores em comunidades online e a organização de eventos teria um ponto de virada importante por volta de 2016: a entrada do Spotify no mercado de podcasts.
Com esse movimento, que não é único, mas ainda assim representativo, chegaríamos na terceira grande submissão. Agora, o podcast entraria de cabeça na plataformização de sua produção, modelos de negócio e estratégias de consumo.
Com a terceira grande submissão, a relação dos produtores com grandes plataformas mudaria.
A entrada do Spotify no mundo dos podcasts é por si só curiosa. Profissionais de ciência de dados da empresa começaram a notar uma tendência entre usuários alemães: subir audiobooks como músicas e criar playlists com eles. Isso fez disparar uma percepção interna de que o mundo do áudio teria muito mais possibilidades do que apenas o consumo de músicas, levando a criação de um projeto interno para viabilizar a entrada no segmento.
O que se viu na prática foi uma série de aquisições de peso envolvendo não só soluções de hospedagem como uma das produtoras criadas a partir do segundo momento já relatado aqui, a Gimlet Media, de Alex Blumberg, ele mesmo ex-colaborador da NPR, movimento apresentado em um dos episódios de um dos podcasts mais ouvidos da produtora, o Startup. Estes dois grandes movimentos dariam ao podcast não só acesso a base de ouvintes do Spotify, como levaria grande parte do seu ecossistema para uma outra lógica, a das plataformas.
Quando se submete à lógica da plataforma, algumas das características iniciais das primeiras fases se perdem, vale lembrar. O RSS, origem técnica do podcast, deixa de fazer sentido em um mundo de streaming (ainda que fosse transparente para grande parte da audiência), por exemplo.
Outra mudança evidente foi na concepção de modelos de negócio: embora a relação direta com sua audiência a partir de assinaturas no modelo de financiamento coletivo recorrente ainda figure como um dos formatos mais buscados por programas que ganham certa audiência, podemos notar um aumento de procura por soluções de mídia programática volta a fazer parte dos tópicos mais publicados em comunidades online sobre o tema.
Ocorre que, plataformas que são, os aplicativos de podcast, atuam de forma híbrida, oferecendo-se como produto enquanto ao mesmo tempo, demandam para o crescimento de suas estratégias comerciais outro produto muito especial, a performance de seu público, seja ele o produtor ou a própria audiência.
Assim, o olhar atento aos dados gerados pela audiência, passa a ser um dos ativos mais importantes no oferecimento de serviços de hospedagem aparentemente gratuitos. Um aplicativo de podcast hoje mede o que cada assinante ouve, com que frequência abre este ou aquele perfil de podcast, que programas assina e sobretudo como é seu comportamento durante a escuta de um episódio. A cada segundo e durante todos os minutos com os quais o ouvinte interage com ele.
Agora, na terceira grande submissão, todos os envolvidos são o produto.
Ou melhor: na mesma medida em que o produto de um produtor de podcast é o seu programa, o produto do aplicativo é a sua audiência. O grande resumo de nosso tempo: afetados por uma lógica comercial, pela existência de uma produção que tende ao infinito e na limitação de sua atenção e tempo, a audiência de podcast é um negócio para as plataformas que chegam para dominar esse cenário e que vendem os dados obtidos com as pegadas digitais de sua audiência para seus anunciantes. E quem precisa crescer para obter mais e mais dados, tem pressa.
Com a chegada de grandes plataformas, que doutrinam e abrem ao público geral seu entendimento sobre o que é e como ouvir podcast como cânon, mandamento fundamental, as disputas se desequilibram. Quem deverá levar os poucos minutos de atenção disponíveis nesse mundo de produção tendendo ao infinito?
E a audiência: será ela um polo ativo no ciclo de codificação-decodificação das mensagens do contemporâneo ou apenas um dos integrantes dessa cadeia de produção de dados, dos quais as plataformas se alimentam?
E é partir daí que minha investigação começa! ; )
Se você quiser contribuir, é só me enviar um email para eusou@mauroamaral.com
Enquanto você lia o meu texto aí em cima, tudo isso aconteceu:
Make podcasts, not headlines, é o pedido deste artigo sobre mais um anúncio de contratação de celebridades para criar “podcasts exclusivos para o Spotify.
Este post sobre a jornada de Joe Rogan que explica como e porquê ele se transformou neste gigante;
Relato interessante de uma empreendedora do mundo do podcast. O quinto ponto é o mais valioso;
O que as aquisições recentes do Spotify representam para os podcasters (dos EUA, claro)
Bíblia de Podcast, ou como manter a evolução constante de seu programa
Podcastle.ai, o app que quer fazer milagres;
E mais:
Aqui, um pensamento interessante sobre Jornalismo Científico nos tempos atuais;
Moderador ou tio do corredor? Sobre ser moderador do Metaverso do Facebook.
Cinco filmes que, embora adaptados de obras, conseguiram encontrar sua própria identidade
Este parágrafo introdutório desta newsletter do NYT sobre Podcast é só um dos temas centrais de minha dissertação de Mestrado. Se liguem:
"Whether you listen to podcasts or not, it’s worth appreciating something odd about them. Podcasting has been one of the few areas of digital information and entertainment that hasn’t been controlled by giant corporations.
That phase is ending, and there’s now a battle to become a Big Tech Boss of podcasts. The past weeks of controversy involving the podcast host Joe Rogan highlighted the ways that Spotify and other companies want to become a Netflix of podcasting.
They imagine controlling both popular programming like Rogan’s show and the digital spot where we listen."
Para ler completo aquiE os leitores de Harry Potter que estão começando a chegar na Academia?
Até a volta, folks
Aqui, queria combinar um negocinho com vocês. Estou numa levada louca (momento timbalada) e vou tirar uns dias de descanso nesse quase-Carnaval que vai de 28/02 a 03/03. Daí, é bem provável que a próxima edição atrase, beleza? Ou talvez só voltemos dia 10/03 mesmo.
Mas vocês prometem que seguem por aqui, né? Valeu!
Até!
Mauro, sempre incrível ler sobre podcasts vindo de alguém que vive isso. Eu já te disse da minha dificuldade, mas como curiosa, fiquei feliz em ver que o RSS foi o primeiro facilitador. Sobre o Spotify, vejo que há um movimento similar ao que o Facebook fez com alguns gamers aqui do Brasil, retirando-os da twitch e inserindo na plataforma deles com metas mais fáceis de transmissão e uma oferta financeira ainda melhor... Mas com uma queda absurda de audiência nesse processo. O mesmo eu vejo em relação a alguns podcasts independentes que migraram - chegam em mais gente, mas perdem aquele senso de comunidade.