Estou deitado de costas para a grama em uma cabana na serra e sou como uma panqueca recém-retirada do congelador porque frio e quente ao mesmo tempo. O frio vem de dentro. Mas ainda assim, através da fina camada que separa minhas costas do chão, começa a se desenvolver um pensamento quase corporificado pelo contato-coceira que sinestesicamente faz tic-rac-trec-ric-tic-tac…
Balbucio o parágrafo acima e noto como soa estranho dizer que um pensamento começa a partir de um contato físico. E, mais uma vez, lembro que contato físico não é o meu forte. Mas o pensamento sim, e ele é o seguinte: naquele momento eu poderia estar tanto segurando o Globo Terrestre como um Atlas, quanto sendo empurrado por ele pelo Universo (vá, lá, por nosso sistema solar), como em “Terra à deriva”, o outro livro do Cxin Liu - sobre o qual já falei algumas vezes.
Lembro que o mais curioso é que eu não saberia dizer a diferença. Isso porque, neste caso, o que muda é a perspectiva de quem olha e não a perspectiva do frio que vem de dentro. E, ainda que a maturidade nos ensine a não considerar a avaliação-validação para seguir em frente, o olhar de quem vê de fora é desconfortavelmente determinante para - em nossa história - sinalizar se estou esmagado por 5,972 × 10^24 kg de rocha, água, florestas, papel, golfinhos, gafanhotos e todas as instâncias burocráticas do mundo; ou se transformei o terceiro planeta deste sistema em um vagão de trem desgovernado e eu em seu maquineísta pouco-habilitado.
Na dúvida, apertei os dedos no gramado, entre o puxar para frente meu planeta inteiro ou segurar equilibrado toda a sua energia potencial dessa esfera em que habito. tic-rac-trec-ric-tic-tac…
Estou dirigindo de volta e a estrada é uma linha reta em perspectiva forçada, paralela a tantos outros pensamentos. Novamente, a perspectiva de quem vê de fora me coloca entre as costas acopladas ao descanso de alguns dias, sem avisos intermitentes de dispositivos telemáticos e teimosos; e o semi-desconhecido retorno à vida mundana. 100 km/h, 90 km/h, 100 km/h. Oscilação, segurança, firmeza.
Recordo o que havia feito nos dias de descanso que separam os semestres: reconectado a família, comemorado aniversários, descansado… e marcando o embaçado do box do banheiro da cabana com sigilos quase ilegíveis onde se lia: buscar essência. A razão secreta do passeio.
Ela existe.
Em 2018, escrevo esse manifesto, ciente de que o modelo de timelines movidas por algorítimos não nos levaria a um bom termo, ou lugar, ou escolhas políticas. Em 2019, comecei o podcast que deu origem a essa newsletter como o projeto de conteúdo central dessa posição.
Descubro que moro na fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura, uma cabana menos fria, mas que ainda assim me deixa sempre deitado de costas para o mundo, entre segurando e sendo empurrado com ele.
Me esqueço desse formado fluido e deliciosamente auto-consciente de trabalhar os conteúdos e sinto-me afastar do poder do sigilo desenhado na fumaça do box: buscar a essência, quem diria, é não sair do lugar de origem.
Volto ao controle do volante quando o velocímetro marca 120 km/h. Não tão rápido, senhor. Sorrio, porque deitado na grama era frio por dentro, em conexão com o mundo sem-notificações rabiscava pedidos de ajuda e urgência em busca de propósito, e tudo estava, onde sempre esteve.
Na fronteira, no fluxo direto da minha consciência para os ouvidos da sua.
Respiro fundo. Faltam só 200 km. Chego em casa. Volto.
Começo.
Destaque para o punchline final: “buscar a essência, quem diria, é não sair do lugar de origem.” Me identifiquei e cruza com uns pensamentos que tenho tido sobre potência. Valeu por essa!