Roubo de identidade e posteridade, duas faces de uma mesma falsa moeda
Michelangelo, uma fábrica de pessoas e aluguel de rostos para Deep Fakes me fizeram perguntar por onde andaria personagem mítico dos primeiros anos da Cristandade.
A lenda do Judeu Errante sempre me chamou atenção pela possibilidade de uma ressignificação de nossa relação com o tempo. Se você, integrante de minha provável audiência, ainda não se deparou com ela, aí vai:
O judeu errante, também chamado Aasvero, Asvero, Ahasverus, Ahsuerus ou Ashver, é um personagem mítico, que faz parte das tradição oral cristã. Diz a lenda que Ahsverus foi contemporâneo de Jesus e trabalhava num curtume ou oficina de sapateiro, em Jerusalém, numa das ruas por onde passavam os condenados à morte por crucificação, carregando suas cruzes.
Na Sexta-feira da Paixão, quando da passagem de Jesus Cristo com a cruz às costas, este sapateiro teria interrompido do seu tormento, para o empurrar e para lhe gritar que se despachasse, ao que Jesus, como resposta, lhe teria concedido a eterna penitência de esperar o seu regresso, vagueando pelo mundo sem descanso, nem nunca morrer, até ao fim dos tempos.1
Cabe aqui, para o bom do transcorrer de minha breve narrativa, pular a parte em que a figura sempre pacífica e acolhedora de Jesus joga uma praga desta magnitude em um pobre sapateiro para, assim, focar em sua jornada a partir deste dia. Para ser mais preciso, em um recorte de tempo pouco menos de 1500 anos depois.
Florença, Itália, 1503
Nosso eterno errante já teria se acostumado a viver deserdado das fronteiras da identidade, justamente por exacerbar a posteridade de uma única versão e andaria pela Itália do Renascimento. A peste dera sinais de arrefecimento havia algumas décadas, (curiosidade: culparam ratos no lugar da perseguição aos gatos pretos feita pela inquisição, estes que comiam ratos e suas pulgas, é bom que se diga) e, depois de alguns contratempos com ricos dignatários de Florença, estaria preso junto com um cidadão de baixos humor e estatura.
Apenas para trazer algum contexto, após se meter em algumas travessuras seu companheiro de isolamento, passaria três meses escondido em uma pequena sala abaixo da tumba que este estava preparando para os Médici. O taciturno companheiro de cela defendia à época a criação de um sistema de governo mais democrático, vejam só vocês, o que o colocaria em franca oposição com os próprios integrantes da família mais poderosa da Europa, na figura de seu mais proeminente representante, o Papa Clemente VII. Para sobreviver, se escondeu.
Mas, gênios são gênios (havia esquecido de comentar, nosso Judeu Errante estaria dividindo o calabouço com Michelangelo) e tudo daria certo quando, ao final daquele período, tendo o baixinho sido liberto e a vida transcorrido como sabemos.
O quarto que dividiram (inclusive biblicamente, por que não?) só seria redescoberto em 1976 e, de quando em vez, é aberto à visitação. Por quê? Um dos ícones do Renascimento italiano passaria o tempo desenhando figuras, alguns instantâneos de seus companheiros e até rascunhos para a Capela Sistina que, enfim, o imortalizaria. Com poucas ferramentas à sua disposição, plasmaria identidades futuras nas paredes.
Neste arremedo de narrativa que divido com vocês, Ahsverus teria em algum momento da década de 70 do século XX experimentado a necessidade de mudar de ares, sair um pouco daquele Velho Mundo e ver de finalmente ver de perto aquilo que ouvira comentar sobre as terras do lado de lá do Atlântico. Teria consultado antigos cadernos de notas e relembrado colóquios do final do XIX com aventureiros chineses em busca de ouro em um local chamado Califórnia.
E partiria numa terça-feira logo após o almoço.
As décadas passariam rápido, não sem a sua atenta observância para o constante culto a identidade que se desenvolveria naquela região específica da América do Norte.
Um culto diferente da tradição oral e milenar de onde viera, igualmente diverso daquele criado pelos que seguem "o povo do livro” inspirado pelo Nazareno que destratara dezenas de séculos antes e totalmente oposto ao que Hindus, Xintoístas, Budistas e demais variações deste infinita sessão de Jazz, pregariam.
(Opa, perdoem o trocadilho, pois nossa historieta começou com um passeio de Cruz no ombro.)
Ahsverus apenas observaria, paciente, a diluição das identidades em empresas pessoais, em empreendedores de si mesmos2, em secretas fórmulas mágicas que tal e qual os papéis na testa do Golem, fazem andar e ter vontade própria autômatos virtuais.
Mas nada o prepararia para os últimos avanços que a marcha inexorável do Homem Contemporâneo prepararia. Ele, que já havia andado por todos os cantos, sendo reconhecido algumas vezes, esquecido tantas outras, habitado no imaginário, voltado à terra e depois evaporado na tradição musical que remontava há 10 mil anos atrás, sequer acreditou quando com seu smartphone em punho (pois quem não se moderniza, já que não morre, fica parado no tempo), começaria a receber links como esses:
Depois disso, sentado eternamente em uma Starbukcs em Palo Alto, Ahsverus se colocaria a pensar se tudo até ali teria valido a pena
Quem disse que acabou?
Enquanto nosso Judeu Errante segue pensativo sobre suas escolhas de vida eterna, gostaria de compartilhar com vocês um projeto novo no qual vou investir algum tempinho a partir deste mês.
É um podcast diário chamado UmaPessoaPorDia.com.br. Seus porquês e para quês, estão bem descritos no episódio teaser. Queria convidar vocês para ouvir e, sobretudo, contribuir.
Estou esperando.
Perguntinha da semana:
Fosse você eterno, o que estaria fazendo agora?
Como não deixo você sem o link que o salvará na próxima roda de amigos, aí vai uma explicação inicial sobre a lenda do Judeu Errante.
Em uma das primeiras edições da Newsletter já referenciei do que se trata a Ideologia Californiana
Se fosse eterna, acho que seria andarilha.