Percebo a trend tomando proporção em algum momento no meio da sexta-feira (02/07), internado com esposa para um procedimento padrão (sim, hospital em meio à Pandemia, calculem o cagaço): perfis e mais perfis no TikTok fazendo pegadinhas com seus parceiros, familiares, amigos ao redor de um comportamento frente a TV, qual seja: abrir o streaming, encontrar a série SexLife (Netflix, 2021), terceiro episódio, minuto 19m40s. A trend se concluí ao filmar a reação dos envolvidos. As melhores são as senhorinhas, claro.
Rimos juntos da disposição do público comum em se assustar com algo tão banal (em tempo: o membro de um dos protagonistas. Em tempo 2: os dotes já foram desmentidos pela produção, é prótese cenográfica) e já em casa, nos prontificamos a finalizar a série. E é aí que uma discussão nasce, cresce e segue sem muitos adeptos, situação que pretendo mudar com esta rápido artigo. Até onde pude perceber, mais importante do que registrar o assombro frente a centimetragem de Brad, é entender como uma narrativa apresenta uma agenda oposta a de sua storyline. E de como ninguém percebeu isso, ou estamos todos perdidos em uma distopia conversadora.
Resolvo explicar. Na série de oito episódios, dirigida por Stacy Rukeyser (de “UnReal”) que está em primeiro lugar no Brasil segundo ranking da própria plataforma, acompanhamos a vida de casada de Billie, bela psicóloga na faixa dos 30 anos que curte a vida de alto padrão nos subúrbios de Nova York. Com o nascimento do segundo filho e seu ressentimento pelo afastamento do Doutorado, o casamento esfria e ela começa a escrever um diário no qual relembra seu passado livre e independente no SOHO, bairro boêmio da cidade que nunca dorme. Parte das lembranças é sobre seu primeiro casamento com Brad, produtor musical, igualmente milionário.
Percebo que tirar a tensão financeira do cenário é uma das primeiras pistas para desvelar a agenda desse roteiro que parece vindo direto das bancas de jornal dos anos 80. Bianca, Sabrina, Júlia, lembram? Mas, tem mais. Noto que a persona de Billie é construída a partir da negação da liberdade, ela é autora de um artigo acadêmico sobre as vantagens da monogamia, sendo ela mesma egressa do Sul dos Estados Unidos, do qual “fugiu” pois pais muito opressores.
Resolvo não dar spoilers, mas uma leitura geral dos movimentos. Entre idas e vindas, marido descobre diário, vai atrás do ex (é a tal cena na qual ele, sim, o próprio, vai ao banheiro dar uma manjada nos dotes do primeiro marido da mulher…), ex se anima a reatar um possível romance, marido tenta algo com sua chefe, faz vários discursos sobre tudo o que oferece para Billie, essa aos prantos “sim, você está certo, vamos pensar maneiras de reativarmos nossa relação”. E, por indicação de amiga, vão para uma festam digamos, "liberal".
É na deturpação da cena liberal que mora a chave
Me recordo instantaneamente que, uma rápida consulta em guias e blogs desta cena, o primeiro alerta é “Não tente resolver uma crise de relacionamento indo para um bar liberal”. Esta prática é para casais resolvidos. Aliás, resolvidos é uma das formas pelas quais se qualificam os casais em bios em redes sociais para este fim.
Nas cenas que retratam o olhar conservador do casal pelos quartos, noto ainda outra distorção: maridos mandando. Este “erro” é muito importante para o que pretendo aqui. Até onde se sabe, não existe este olhar centrado na figura masculina. É da mulher do casal que parte as autorizações, as escolhas e tudo o mais. Mas na câmera de SexLife, cabe ao marido (típico Republicano conservador) comandar uma cena no mínimo constrangedora que, para olhares mais atentos, configuraria abuso. Deu tudo errado.
Explico que é essa cena que estrutura toda a agenda de SexLife. Ela não é um softpornô para senhoras, ou apenas isso. Não é uma peça singela para se passar o tempo. É um libelo conservador daquilo que mais típico e ruim se tem na categoria. A partir de sua explicação e normalização, entendemos que todas as questões da sociedade machista e falo centrada seguem firmes (ou cabisbaixas porém resilientes) e que a alternativa à liberdade de outrora é, enfim, uma transgressão consentida, chumbo trocado, representado aqui pela cena/frase final, sobre a qual não vou antecipar.
Concluo: os tais 19h40s do terceiro episódio são sacudidos na sua frente como prova cabal dessa agenda. É ele quem está no comando, não Billie.
Comentários?
Baita texto. Análise muito sutil, e, mesmo que a "série" seja inocentada dos perigos que vc alerta, o alerta continua válido. Me lembro aqui da polêmica sobre a serie "Them" que se apresenta como uma denuncia revisitando a violência racista da sociedade, mas que na prática se utiliza de elementos de "torture porn" - e aí fica difícil saber se a ideia é conscientizar ou "estilizar" (e desumanizar) a violência e o sofrimento. Não necessariamente isso implica em "culpabilizar" produção e diretores, mas temos sim que ter atenção às camadas. Indo um pouco mais longe no tempo, por exemplo, temos o nosso "Tropa de Elite", um filme feito por pessoas não-"fascistas" para denunciar os excessos de um sistema "fascista" (excessos inclusive sobre o o próprio protagonista Capitão Nascimento) mas que, bem, foi aplaudido pelo público talvez pelas razões inversas, afinal nossa sociedade já era essa naquele tempo - talvez um pouco mais "assintomática" do que hoje, mas enfim...