The Beatles: Get Back. Sobre documentário de Peter Jackson e o perigo de virar cover de si mesmo
Entro em um dos elevadores do prédio da sede da Petrobras no Rio de Janeiro em 2004. Nas mãos, um folheto que recebi na entrada anunciando um show de uma banda cover, todos barrigudinhos e simpáticos, provavelmente um ou mais deles petroleiros. "Eles são ótimos", avisa o amigo que funcionava como tutor naquele novo mundo estatal e continua: “…mês passado estavam por aqui apresentando outro show, mas esse com os The Beatles é melhor”.
A minha reflexão da época está registrada neste post, no ar desde então, no meu blog mais antigo, já quase caminhando para vinte anos de atividade.1 Como editor de um dos portais internos da mega-companhia, com recém-completados 30 anos, eu discorria sobre o perigo de me transformar na cópia de outros ou, pior, de mim mesmo:
Ser cover de uma tendência, de um modismo, de uma faixa de preço, de uma linha criativa... tudo isso, na minha opinião, é um grande tiro no pé… em um mercado cheio de oferta, a procura fica mais fácil quando você tem perfil diferenciado.
Sim, eu cometia alguns trocadilhos que adorava, como esse de brincar com oferta e procura. E, sim, falava como o blogueiro dos freelancers. Outro tempo, outra vida, prova de que podemos viver várias delas ao longo de jornadas profissionais.
E é esse sentimento duplo, qual seja, o de evitar virar cover de si mesmo e o de viver várias vidas criativas em uma única jornada biológica no planeta é que nos conecta com a experiência que foi ver quase que sem interrupções as sete horas do documentário The Beatles: Get Back, disponível na Disney+.
Não por acaso esse é o nosso tema de hoje.
O BBBeatles, o primeiro reality da história?
Para criativos, a gênese de ideias é sempre o melhor momento. Dou um exemplo pessoal: sou fã desses concursos de pessoas que cantam, cantam, cantam e vão se eliminando em provas semanais na disputa por um prêmio sempre infinitamente menor do que serão seus cachês, quando e se atingirem o estrelato.
Só que, para mim, a graça está somente nas audições, aquele momento que o cara vai com a plaquinha na mão e mostra o que sabe. Ali está a gênese, o assombro, o sublime momento de ser tocado pela genialidade em seu estado puro. Até por isso, quando terminam as audições, me desinteresso.
Talvez isso explique porque tenha curtido tanto o documentário. Essa é uma das principais experiências que o mais recente trabalho de Peter Jackson oferece ao expectador. Uma sucessão de nascimentos das canções que virariam clássicos irretocáveis e reproduzidos ao redor do mundo desde então.
Logo no primeiro episódio vemos Paul chegar pela manhã nos ensaios dos estúdios Twickenham e apresentar uma progressão de acordes que daria origem a Get Back. “Pensei nisso noite passada, mas ainda não está completo”. E os três ali, começam a criar dentro de suas próprias cabeças as partes que comporiam o arranjo.
O que nos leva a outro ponto: a troca de ideias entre os FabFour. Classificada por Adam Rosenberg em sua resenha para o site Mashable, como generosa, a prática envolvia sempre o melhor de quatro dos maiores criadores de todos os tempos. Para a gente de algumas gerações depois o processo soa caótico, sem memória de seu próprio progresso, sem backup, sem edição não-linear… feito ao vivo, for God Sake. E, até por isso, valiosíssimo.
Essa forma aparentemente despretenciosa de criar transparece em outros atos. Tirando um ou outro ataquezinho de George (como a famosa frase: “nunca fui a uma loja de sapatos, por favor, traga alguns para mim”), a maneira como tratam os que estão a sua volta é muito distante do que vemos hoje, nos camarins de vencedores do Grammy.
Para além da cordialidade inglesa e humor juvenil (só tinham 28 anos, cabe lembrar), temos uma cena bem curiosa e que serve de exemplo para isso: o magrelinho John Lennon ajudando a carregar um pesado órgão Hammond para dentro do estúdio, para seguir com os takes de Let it Be. Sem alarde, com se fosse a coisa mais normal do dia, junto com assistentes de gravação e o Billy Preston, tecladista que os acompanhou no período, como em um dia de trabalho, em uma terça-feira à tarde, próximo a hora do chá.
O cara já era o John Lennon. Mas, bem lá dentro, ainda era também o músico da noite de Hamburgo, que saía de Liverpool de carro, com instrumentos por cima do colo e dirigia horas para as suas primeiras gigs.
É aqui que mora essa honestidade de se entender em constante transformação.
Relembrando um pouco aqui o lugar de fronteira dessa newsletter (para quem está aqui pela primeira vez, escrevo diretamente da tríplice fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura), a passagem dos ensaios para as sessões de gravação, na casa deles na Apple Studios, nos mostra um pouco da evolução da tecnologia de gravação neste meio século, o que para quem é conectado com produção é sempre muito interessante.2
Um gravador de oito pistas que hoje ocupa o espaço pouco menor do que um caderno de notas em minha mesa, é um armário de 2 metros de altura, custando milhares de Libras. E que tinha que ser emprestado pelo próprio George Harrison. :)
Reparem no que eu quero dizer: é curioso ver como a qualidade artística do produto final, contudo, não se relaciona com a muleta da ferramenta.
Se hoje temos cabines que flutuam em camadas de lã de vidro e isolamento acústico avaliados em centenas de milhares de dólares, para a gravação de Let it Be, temos o microfone com capas descascadas, em meio a garrafas de Vinho Branco.
Se hoje temos o ProTools e o Reaper, Glyn Johns que duplava com George Martin na produção do álbum contava com algo semelhante a uma sala de comando de um submarino da Segunda Guerra. O resultado saía dali.
(Nota importante: menino Glyn detonou o trabalho depois…)
Atualizo esse papo retro-tecnológico ao lembrar que o documentário em si é obra dos arroubos futurísticos de seu diretor, que inventou uma empresa de computação gráfica para poder dar vida a trilogia do Senhor dos Anéis.
Se em seu primeiro trabalho como documentarista, conseguiu trazer à vida imagens de jobens da primeira guerra, em Get Back, direcionou a inovação às camadas sonoras de seu material, como nos lembra este artigo da Guitar.com.
“At Twickenham, they’re rehearsing and so they’re not recording on eight-track, it’s just mono,” Jackson explains…The vocals get drowned out, the guitars are loud…
…But we got some really clever people down here at Park Road Post to build some software for us that is all AI-based machine learning. You teach the computer what a guitar sounds like, you teach them what a human voice sounds like, you teach it what a drum sounds like, you teach it what a bass sounds like.
“And so then we can take a mono track of them in Twickenham performing and we can say, ‘Just give us the vocal track’. And the machine learning will render a vocal track only"
Mais uma vez pontuo: a inovação não foi muleta. Foi necessária para seu produto final.
(Tá bem, ainda acho que tanto o They Shall not Grow Up como o The Beatles: Get Back são provas de conceito para este tipo de tecnologia reconstrutiva e que em breve veremos algo inédito vindo do diretor neste sentido. Mas estou ainda tentando dar uma forma melhor a esse insight)
Para além do processo e da tecnologia, a relação
Peter Jackson foi muito honesto em não perder um sentimento latente que unia os quatro até no momento de sua separação iminente: o desejo de lutar para isso não acontecesse.
A banda caminhava para o final e o que a crônica registrou nos últimos cinquenta anos se desenha claramente: o flerte com as carreiras solo e, claro, a questão John-Paul x George. É difícil ser George na frente de John-Paul? Sem dúvida. Como enfrentar uma dupla que se comunicava telepaticamente? George, mesmo sendo um músico de nível mundial (ao ponto de o único cogitado para substituí-lo ser… Eric Clapton!), sentia essa limitação.
Essa química meio que azedada dá origem a um dos pontos altos de todo o documentário. É uma das cenas que mais me tocou. George diz - como quem vai comprar a Coca-Cola do almoço no mercado da esquina - que está fora da banda em definitivo. No dia seguinte, John se atrasa para os ensaios e cabe a Paul e Ringo baterem um papo para dar continuidade à gravação do documentário. (Em tempo: o trabalho de Jackson é um documentário SOBRE este primeiro documentário, só para não nos perdermos). O papo é sobre o fato da saída de George e o primeiro solta um:
“É, vamos sobrar só nós dois”.
É claro que o diretor escolheu isso a dedo nas mais de sessenta horas de material bruto que ficaram guardados desde 1969. Ou, é claro que a cena tinha que estar lá para ser escolhida 50 anos depois para nos mostrar isso.
A perseguição do genial: do começo ao recomeço
E, então, chega o momento com o qual muitos de nós nos relacionamos com essa fase, uma vez que são imagens do imaginário popular quase como uma assinatura em qualquer jornal ou programa especial sobre o fim do grupo: o show no telhado do estúdio.
Todo o desenrolar para que o evento acontecesse assume algo de pastelão, com bobbies (os tradicionais guardas londrinos) esperando na recepção, mordendo a alça de seus capacetes caraterísticos, a cara de Paul ao notá-los à espreita e o desligar do último PA, o nervosismo da equipe de produção, descaso total para as regras de segurança e até a indiferença do público lá embaixo, muitos deles reclamando: “Vai atrapalhar os negócios na região, um absurdo”… são obviamente itens de colecionador esperados. E, até mesmo, já muito conhecidos.
Caminho para a conclusão desta edição monotemática, conectando esse momento, a última aparição do grupo, com outro pensamento.
Tocados por um acontecimento único na história da música, sendo eles mesmos pioneiros das apresentações para grandes multidões (e até por isso pouco ganhando com isso…) , os Beatles tinham na perseguição de sua própria genialidade seu grande segredo.
Não resistiram para ver se transformarem em um folheto de elevador que poderia ter chegado em minhas mãos como o ingresso de festival do século XXI, anunciando-se como cover de si mesmos.
Muito se especula onde estariam e até mesmo filmes de um realismo fantástico curioso (ou duvidoso?) propuseram a sua não existência para o mundo (Yesterday, 2019, disponível na Prime Video), mas o fato é que a única certeza que temos é que depois do topo, só há um movimento HONESTO o suficiente para se fazer: recomeçar de forma diferente, renovada e sempre em busca de sua própria genialidade.
Mais ou menos como foi genial a última frase de John, que paira entre eternizada e redescoberta. Ela é atual para sempre, valendo do último dia de janeiro de 1969 até a cada novo play do documentário da Disney+:
"I'd like to say thank you on behalf of the group and ourselves and I hope we've passed the audition."
Passaram sempre. Passarão sempre. All (of your) things must pass.
A edição de hoje gostaria de apresentar ainda
Um certo ranço que estou desenvolvendo de uma expressão bem 2021 e toda a sua positividade tóxica:
Aproveitando o Tweet anterior, vale lembrar que Jack Dorsey não mais comanda o Twitter, casa que fundou. Aliás, o fato de ser um fundador não tão conectado com a gestão da empresa pesou na decisão do board. Isso e o fato deste board ter uma galera Alt-Right que não se dá bem com esse negócio de censurar fake news…
Para quem é fã do Sr. Saru, Capitã Michael e equipe a boa notícia é que a nova temporada de Star Trek Discovery foi adiantada e já está disponível. A notícia não tão boa assim é que sua mensalidade suada da Netflix não dará conta, porque o conteúdo foi para a Paramount+, deu lá no Tecnoblog.
Terminando com música o que começou com música, dá uma chance para essa performance de Gal Costa no Altas Horas do final de semana passado. Tem tudo a ver com o nosso momento e tem tudo a ver que existe sim gente que não precisa de autotune.
Queria continuar, mas o Substack está me avisando que bati a quantidade de caracteres permitida em uma newsletter. :)
Perguntinha antes de desligar o PA de cima do telhado de uma vez:
Quais as cinco músicas dos Beatles que estariam em seu setlist no roof top da Apple Studios?
O blog Carreirasolo.org teve seu primeiro post publicado em janeiro de 2004, começando aquele ano com desejo de construir algo diferente. No auge do movimento dos blogs, fui entrevistado por vários veículos, dei algumas palestras, me aproximei da turma do B9, gravei muitos podcasts e tentei, por duas ou três vezes, e investimentos consideráveis, transformá-lo em um negócio. Hoje, segue no ar, como uma Voyager deste meu momento, carregando discos de ouro com diagramas explicativos para futuras civilizações me encontrarem e tentarem me dominar em vão.
Só complementando esse lado conectado com produção, estou em meio à leitura de um livro bem interessante chamado “A destruição criadora da indústria fonográfica brasileira”, de Leonardo De Marchi. A obra, além de desenhar uma arqueologia da mídia e da indústria da captura da música, mostra como todo o sistema foi reinventado a partir do Streaming.
And in the end, the love you take; is equal to the love you make. Beatles forever.