Levo você para visitar uma tarde comum da minha infância. A garotada da rua está ao redor e eu tento explicar que o clube que proponho é para troca de livros e criação de um jornal de bairro. Tenho 10 anos, eu acho. Mas todos acreditam se tratar de um clube de futebol, o único complemento após a palavra clube é “de futebol”. E se debatem para tentar descobrir quem será o capitão, ou o técnico, ou o goleiro e quem vai patrocinar as camisetas. Guardo os planos para o jornalzinho e o layout da primeira edição feito à mão. Foi a primeira vez que entendi que não seria fácil achar uma turma.
Exijo um pouco de boa-vontade de minha provável audiência para outra viagem no tempo. Essa mais próxima, para alguns meses depois. Inicio o segundo ciclo do Ensino Fundamental. Próximo à escola - que estudei a vida inteira - uma banca de jornal. Frequento a banca, mapeio os lançamentos perguntando a data para o jornaleiro (o que aconteceu com os jornaleiros, de camisas abertas até a barriga e um mau-humor contagiante?), monto uma sociedade com meu irmão do meio para dividirmos a mesada e assim comprarmos tudo o que sai. Antes da entrada, no pátio da escola, explico para todos que existem os Marveletes e os Decenautas. Todos riem. Ser Nerd antes de ser moda era estar fora de moda. Apenas um escuta. É a primeira vez que monto uma turma fora do trio de irmãos que lêem gibis em casa. Mas, o tempo passa rápido, o Ensino Médio muda a composição das turmas, o curso técnico leva o amigo quadrinista.
Sinto como se fosse ontem as mãos dormentes depois de 2 horas de pé no ônibus. É o ensino médio, faço meu curso regular na mesma escola, para a qual vou a pé. Mas, simultaneamente, faço um curso técnico de música, na Escola Nacional da UFRJ. Almoço enquanto troco de roupa, troco de roupa enquanto caminho para o ponto do ônibus, sigo de pé por 2 horas com a mão já suja do alumínio da barra onde se segura para não cair. Não deixo a peteca cair. Mas, nem me lembro do nome dos meus colegas de turma. Por que, você já entendeu, é muito difícil fazer uma quando se tem os minutos contados e 65 km diários separando você dos dois ensinos médios que faz. Mas, pelo menos, vejo coleções de Vinil pelas lojas do Centro do Rio. Anos 80.
Passo para a UFRJ, novamente. Escolho largar a música - pelo menos o ensino clássico oficial, bandas de garagem são outra história - , e começar meus estudos em Comunicação Social. Todos riem: “estudar para quê, vamos para o sujinho!". Vou à biblioteca durante quatro anos tentando achar bibliografia de graça. Livros empoeirados me contam sobre as Teorias e Práticas que já envelheciam nos anos 90. Eu lembro da banca de jornal. Faço alguns amigos, mas, sempre é hora de voltar, porque os 65 km viraram 80 km. As duas horas, três. Leio os livros nesse caminho. Estudo nos intervalos. Leio sempre e sem parar desde que aprendi. O que é uma forma de ter todas as turmas do mundo enquanto se ignora outras tantas do lado de fora de sua cabeça.
Ganho um concurso para jovens talentos e com ele um estágio em uma grande agência de publicidade, na época que ser grande era uma atribuição física de quem queria ser importante neste mercado. Segundo a avaliação dos jurados, sabia fazer títulos. A premiação é em um subsolo de alguma boate da época. Meu pai me leva porque ainda sequer aprendi a dirigir fora do meu bairro. “É essa a turma que você imagina fazer parte?". Teimo que sim.
Descubro que não.
Desenvolvo a habilidade de me irritar continuamente com a superficialidade de todos. Do ZonaSulismo de 90% daqueles que criam publicidade no Rio de Janeiro. Uso isso para ganhar alguns prêmios falando, justamente, sobre a cidade. “Esse olhar que você tem sobre sua cidade é muito interessante”.
Sorriso por fora, conclusão óbvia por dentro. Claro, sou turista.
Leio algumas revistas no mesão da criação que falam exatamente o que escrevi em meu TCC há dois anos antes: empresas virtuais, Internet, Vale do Silício, revolução. No corredor da maior agência do país na época me fazem um convite: tem uma turma começando a trabalhar com internet. Acho que você tem o perfil para isso. Salário 50% maior. Chance de encontrar uma turma, eu penso. “Isso de internet não vai durar dois anos”, diz o Diretor de Criação. Eu aceito o que eu penso.
Descubro que talvez.
A vida vira uma chuva de relâmpagos, daqueles que anunciam tempestades sempre distantes. Aprendo a ler em inglês para poder entender o que se fazia em Stanford e nos escritórios de NY. Aceito ser chamado de Redator Online, Arquiteto de Informação e Estrategista de Conteúdo. Em uma segunda-feira estou criando para o lançamento de um filme da Sony, na outra para a Disney. Em algum lugar entre esses dois momentos ganho um Leão em Cannes. Acho que o segundo para o Brasil na categoria online. Me avisam dois dias depois da entrega do prêmio e da foto oficial, me entregando um diploma. “Caramba, esquecemos de avisar, você foi o redator de todo o projeto”.
O talvez fica um pouco mais fraco.
Descubro que o erro pode ser que esteja em relacionar ambientes com turmas que busco. Mas, ainda assim, entre junho de 1999 (pioneirinho) até março de 2001 eu vivo a euforia de um novo mercado, sua bolha e fico desempregado. Quem disse que tempestades distantes não nos molham?
Agora, tenho uma turma ainda mais importante: uma família que criei. Esposa e três filhos. Um dia estou na varanda e descubro que três crianças dependem de mim e eu tenho apenas 29 anos. Na época eu não conhecia a expressão porque ela sequer existia, mas eu estava ali, em uma vila de casas próxima a um dos pontos turísticos sobre os quais escrevi quando falava turisticamente sobre a cidade (a quadra do Cacique de Ramos)… chorrindo.
Retomo minhas atividades profissionais somente em 2003 - neste meio tempo fiz uns freelas - como Editor de um Portal Interno de uma grande empresa. Em meu primeiro dia, um funcionário de carreira me pega literalmente pela mão e me apresenta a TODO um prédio. Sim, o famoso prédio central da maior empresa do país, próximo das lojas de vinil em que olhava sem comprar. Anos 80 manda um alô para os 90 e se reencontram nos anos 2000. “Vamos agora no subsolo conversar com um amigo que hoje faz os crachás de todos aqui na empresa”. Sinto estar em um filme do David Lynch. “Nossa, é assim que se fica quando não se tem uma turma depois de velho?”. Pelo menos, minhas mãos est˜ão limpas.
Crio blogs, sites, podcasts, uma empresa, 100 mil peças de conteúdo, treino 200 profissionais. Levo executivos para conhecer as favelas do Rio de Janeiro nas Olimpíadas (ainda um turista, né, minha filha?), jovens saltitantes pelos stands do Rock in Rio, minha família para a Disney, “vocês sabiam que eu criei o portal deles no Brasil em 2001?", “sim, pai, você vive falando isso”, levo também minha família à falência duas vezes. Minha família em segurança na pandemia, minha família em renovação para seguirmos enxutos e com as contas mais ou menos em dia a partir de agosto de 2021 em uma nova casa. A antiga casa de onde saía todas as manhãs em busca de uma turma enquanto tentava explicar a diferença entre Marveletes e DCnautas. Deus não joga dados e nem faz parte dos X-Men.
Lembro que ontem, um novo projeto foi ao ar. Um festival de conversas onde turmas se encontram para debater temas preementes na sociedade mundial. Brasil e Portugal juntos, olhando lá e aqui. Recebo o convite para, com a minha voz, produzir as entrevistas com esse time e a partir delas, o podcast que vai dar suporte ao evento.
Penso que talvez novamente. Descubro que sou idealista.
Clap Clap Clap