Não é sobre Ovnis. É sobre narrativas
A guerra que vemos no céu tem pouco a ver com dispositivos pilotados por civilizações muito avançadas. Mas é ainda sobre artefatos.
(antes de começar, lembrando que temos um servidor no Discord e um grupo no Telegram para seguirmos conversando durante a semana. Passem por lá!)
Começo sinalizando que a edição desta semana já estava bem adiantada, com uma abordagem um tanto provocativa sobre o quão realidade e ficção vivem em mutualismo há eras. Alimentando-se de nossa paciência, inclusive.
Para exemplificar traria duas histórias muito perturbadoras: a primeira sobre uma fanática radical que a partir do Canadá incita seus seguidores a atirar em imigrantes e a nova série de Mike Myers para o Netflix (Pentavirato, 2022) sobre teorias da conspiração. E de como uma é inspiração para a outra e vice-versa.
Mas, essa ficou no forno. Porque tivemos revoada de OVNIs da semana que passou e isso nos conta algo ainda mais complexo sobre um embate que, senão intergaláctico, ousa acontecer em nossa frente.
E eu não posso ver nada complexo que quero desenrolar. Como um gato de armazém na frente de um novelo de barbante. Miau.
Mas, vamos aos fatos. Aliás, seriam fatos mesmo?
O site poder360 está fazendo o trabalho completo ao reunir o detalhamento da cronologia dos eventos, mas em resumo o que temos até o dia do lançamento desta newsletter é o seguinte:
02.02 » Pentágono sinaliza que localizou balão espião Chinês no espaço aéreo de Montana, conforme comunicado;
04.02 » O balão é abatido na Carolina do Sul por caças F-22. China rebate, alegando que “o dirigível não apresentava risco civil à população americana”, leia aqui;
10.02 » É o dia em que Patrick Ryder, secretário de imprensa do Pentágono nos informa que outro objeto - aquele do tamanho de um carro - foi abatido no Alaska;
11.02 » Entra em cena Justin Trudeau, que solicita ajuda aos EUA para abater o terceiro objeto, sobre o lago Yukon, após o mesmo invadir o espaço aéreo canadense, como podemos ler aqui. No mesmo dia é a vez dos hermanos do Uruguai (que já foi Brasil, aliás) sinalizarem avistamentos na região de Paysandú;
12.02 » A China informa que também tem avistamentos em seu território e estaria pronto para abatê-lo. Aqui, eu ri. Pois ainda no domingo, EUA abatem outro “Ovni” no lago Huron, em Michigan;
13.03 » Governo americano passa o dia desmentindo a imprensa: “Não são alienígenas, são os chineses mentindo”.
E aqui, a gente começa a debater sobre o ocorrido à luz de uma guerra muito antiga. E atual.
E não, não é guerra assimétrica, ou do bem contra o mal (sic) ou frente a outros mundos. É muito mais sutil. Mas para entender, vamos precisar viajar no tempo…
Imagine que você é um aldeão na Idade Média europeia. Você não é exatamente livre, ou vive em uma cidade onde o ato de emitir sua opinião é permitido.
Você sabe disso desde muito cedo porque entende que a punição é geralmente corporal e pública e serve como uma forma de demonstrar a autoridade do rei ou do senhor feudal.
Você sabe que também pode ser torturado para entregar alguém ao lado (ou a bruxa da aldeia) e, claro, até mesmo ser executado nas praças dos vilarejos. A tal cabeça espetada na lança que você vê nos filmes, sabe?
Preciso que você entre nessa máquina do tempo imaginária por mais alguns séculos. Abra a porta só quando chegar no início do século XIX. Foi?
Boa.
Por volta dessa época, percebe-se que não faz mais sentido ficar torturando gente em praça pública. Somos evoluídos, temos a máquina a vapor, imprensa livre, teatros e até a fotografia já inventamos. Mas ainda precisamos controlar quem está ao nosso redor, ou em linha, nas fábricas.
Aqui temos um encadeamento de artefatos de saber-poder (já vou trazer os nominhos dos pensadores, calma lá) que foram enfileirados para dar conta disso. A família, a escola, a fábrica, o exército, o hospital e a prisão. A partir deste encadeamento de lugares, colocamos o conhecimento como aliado das esferas de poder para legitimar algumas questões.
Por exemplo, cabe a estes dispositivos ou artefatos, dizer o que é normal ou desviante, estipular fases da vida em que se pode ser leve e fagueiro e as outras em que se deve ser circunspecto como um cidadão vitoriano em seu clube de charutos, ou recatada como a daminha da mesma sociedade inglesa do sec. XIX. Enfim: Deus nos livre dos cidadão de bem, desde sempre.
Agora entra aí de novo na nossa maquininha porque senão te colocam para soldar placa de aço do Titanic já, já. Entra aí e sai só quando ouvir o primeiro som de modem de internet discada.
fuóimmmm….tlec…tlec…priiiiiiiii
Pronto.
Anos 90. O mundo vai mudar: a gente reinventou a biblioteca de Alexandria, nos conectamos todos uns aos outros e vamos viver um novo Renascimento. Para efeito de nossa viagem aqui, vamos considerar que foi nessa época em que as coisas mudaram novamente para a forma mais ou menos atual. Tá, tá, tecnicamente falando não foram, mas me dá esse desconto.
Alguns perceberam que dá trabalho controlar esse pessoal todo. É muita gente para educar quando começar a crescer e sair de casa, levar para trabalhar para ganhar capital em cima de sua mão-de-obra, prender quando fizer besteira, drogar quando estiver doente e um longo etc.
Foi aí que alguém soltou um:
Pera, coloca mais um pouco de brandy em meu copo que tive uma ideia: “…e se eles mesmos se vigiassem a partir de suas instituições?".
Pronto: depois do Rei que tortura, do sistema que subjuga pela eficiência, chega o tempo da Sociedade do Controle. Considero uma das jogadas mais geniais da história, ainda que do tipo de gênio que está em seu esconderijo tramando a morte do herói da história.
Isso porque a sociedade do controle se baseia na vigilância e no monitoramento constantes, por meio de tecnologias de comunicação e informação. Nessa sociedade, o poder é difuso e se exerce de forma horizontal, em vez de vertical. Você mesmo pede para ser preso, mané.
Assim, o controle não é mais exercido apenas pelas instituições tradicionais do Estado, mas também por empresas e outras organizações que possuem acesso a dados pessoais e tecnologias de monitoramento.
Sim, "bonitono", as marcas que você adora. Eu curto várias.
Calma que melhora. Acho que sobrou um pouquinho de bateria de nossa Tardis improvisada. É só dar mais um clique e chegar no dia de hoje, exatamente quando o primeiro Ovni foi abatido.
Agora, a gente resume a história e eu te conto sobre o que é isso tudo.
O argumento acima reúne pitadas de Michel Foucault, filósofo francês que você pode conhecer aqui nesse experimento didático que fiz tem algumas semanas, o coreano Byung-Chul Han e pitadinhas de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mas algo bem de leve, só para temperar essa quarta-feira mesmo.
O filósofo coreano cunhou o termo "Sociedade do Cansaço" para descrever a sociedade contemporânea, caracterizada pela falta de tempo e pelo excesso de trabalho. Sim, esse mesmo tempo em que estamos.
Han argumenta que, na sociedade do cansaço, a pressão para ser produtivo é internalizada pelos indivíduos, que passam a se autocobrar e se autocensurar, tornando-se responsáveis por sua própria exploração. Assim, o controle social não é imposto de cima para baixo, mas é internalizado pelos próprios indivíduos, que se tornam "empreendedores de si mesmos".
Ou seja: os dispositivos de saber-poder ainda existem. Só que agora moram na opacidade das plataformas, nas bolhas de reforço positivo dos algoritmos e… nas narrativas impulsionadas por razões não muito demarcadas.
Tudo bem até aqui?
Mas Mauro do céu, o que isso tem a ver com os OVNIs de fevereiro de 2023?
Você da minha provável audiência deve entender que tem tudo a ver. Eu já trouxe uma dramatização dessa história no Penso#6, episódio do podcast aqui da newsletter. Mas retomo o assunto justamente para fazer esse breve ligação entre o estado em que estamos com o assunto são os artefatos (ou dispositivos) de saber-poder.
Hoje, em plena Sociedade do Controle, do Cansaço, da Vigilância, somos reféns de nossa própria necessidade de performance constante. Nos vigiamos sem parar, consumindo o espetáculo da informação e acordando na ressaca do sem-sentido.
Por isso, o mês de fevereiro não é o início do contato final, do grande desvelamento. Os objetos abatidos não são naves pilotadas e/ou comandadas por greys, reptilianos, insectóides, pleidianos ou arcturianos. Os Anunakis não estão voltando de Nibiru e não mais terão filhos com as filhas de Adão.
Mas, ainda assim, paradoxalmente, para que se mantenha a sutileza do tal estado de coisas que demonstrei acima, tudo isso é pseudo-verdade. Pois dela, depende o fluxo de narrativas, de negações nas coletivas de imprensa.
O maior disco voador não identificado é a grande estrutura de saber-poder da sociedade do cansaço: a narrativa.
Não são ovnis.1 Mas são artefatos muito sutis. E funcionam.
A grande pergunta sempre será não sobre o que está sendo mostrado mas, sim, por que é importante prestarmos atenção nisso e não em outra coisa.
O assustador é que a outra coisa me parece ser uma só: a guerra EUA x China.
Está na minha caixa postal, mas poderia estar na sua
Antes de liberar minha provável audiência para o Carnaval, não poderia deixar de indicar uma newsletter que leio desde a época que era (o único) blog sobre livros e literatura do Brasil. Hoje tem outro nome, mas é editado pelo mesmo
.Ocorre que está para sair o curso das Prisões, uma de suas obras mais interessantes e seminais. E que aliás conversa com essas loucurinhas que escrevi hoje.
Ah, e vale lembrar que no app do Substack, que tem para Android e iOS, ler as news é bem mais interessante. Chega mais!
Tem aquela história do podcaster que não sabia entrevistar
Tinha até certo talento para contar histórias. Só que falava pelos cotovelos. E contador de histórias que, ao entrevistas, fala mais do que ouve, não se cria.
A dica: parar para ouvir quem já produziu mais de 200 episódios de podcast desde que isso nem era mora.
Por apenas R$ 7 mensais, os assinantes da newsletter garantem:
Acesso direto à íntegra de materiais das minhas pesquisas, o que é uma super-referência;
E como conversa é o que move o mundo, temos um grupo fechadíssimo em nosso Telegram para seguir conversando, indicando leituras e debatendo os temas dos programas. Normalmente, entro em contato tão logo a pessoa assine. Mas, caso tenha deixado passar, fala comigo!
Você têm uma hora por mês de assinatura para trocar uma ideia comigo sobre projetos de conteúdo. Não é bem uma mentoria, é um papo, sabe? Pode trazer sua dúvida, uma ideia, um pedido de revisão etc.
Para terminar, biscoitinhos finais, prezada audiência
A semana passou com dois grandes entrando - ou anunciando futuras entradas - , no mundo dos robôs de texto que quase pensam. Enquanto a Microsoft já está recebendo críticas positivas após abrir o novo Bing para testes, as ações do Google caíram após a apresentação do Bard, que, ao ser questionado sobre "novos descobrimentos do James Webb Space Telescope", inventou uma resposta do nada e sem contexto… encontre sua voz robótica na matéria do Inteligencer »
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Mike Myers é um cara que parou no tempo, quando fez sucesso com o seu Austin Powers e configurou alguns formatos de roteiro e direção de cena que - aos mais atentos não escapa - , bebe direto na fonte de Mel Brooks. Mas tudo bem, tem seu espaço. Inclusive na minha cabeça, quando quero rir sem motivo de seus enquadramentos inocentes para esconder nudez ou insinuar piadas mais sexuais em filmes PG13. Cada um mora na quinta-série mental que mais lhe apetece, fazer o quê.
E, para fechar (será?) a carreira, Myers assina com Netflix e lança a série Pentavirato que brinca com as Teorias de Conspiração mais famosas. Nota 6/10 »
Agora eu fui. Sério.
Tá, mas eu tenho uma hipótese sobre os avistamentos. Pensa aqui: se você tem um laboratório de espionagem voador que é atacado e ele tem grande tecnologia envolvida, também deve ter sistemas de redundância. Daí, o primeiro ataque que destrói o balão, obriga o laboratório voador a liberar cápsulas de backup do material que está por lá. E foi isso que os F22 perseguiram e abateram. Ou seja, todo esse barulho tem a ver com HDs voadores.
Fiquei imaginando como seria massa essa boa conversa no podcast!