O assombro da câmara escura em tempos de scroll infinito
Levarei você a conhecer onde eu estava quando descobri que morava em uma câmara escura e mais: séries plano-sequência.
Estamos deitados olhando para o teto, depois de algum divertimento no quarto do casal, em algum momento entre 2005 e 2006. Sou eu quem nota primeiro: silhuetas como que elementais translúcidos dançam no teto, indo e vindo como que jogando futebol. São pequenos seres que bailam estranhamente sincronizados com a gritaria das crianças na rua. Estamos em um sobrado pequeno, casa conquistada depois de muitas idas e vindas no pós-estouro da bolha da internet em 2001. Sim, fui um deles. Somos jovens na época, quase como hoje, menos a parte que perdemos massa magra.
A sincronia me chama atenção e é ela mesma a resolver a dúvida: meu quarto no sobrado recém-alugado é uma câmara escura natural. O sol do fim de tarde bate na poça d’água da rua em frente, a luz passa estreita pelos furinhos do black-out da janela, o teto faz o papel da nossa tela.
O assombro. "Noooossa, chama as crianças” - na época todas pequenas - "…vamos mostrar esse cineminha”. Vou na rua e danço para a poça. Ouço risos vindos lá de dentro. Não me importo, como nunca me importei, com os risos aqui de fora.
A felicidade pode morar na câmara escura, desde que você siga dançando, penso hoje. Mas na época não pensei muita coisa. Aliás, não pensei sobre muita coisa que fiz, mas isso é outra história.
Por que hoje, quero voltar no “assombro”. Em como ele nos é natural enquanto viventes nesta pós-humanidade de pouco mais de 200 mil anos. Ou como nos lembra Flusser, ali pelas páginas 126 a 128 de seu O Mundo Codificado:



Não tem como não me comparar ao Homo Sapiens antedeluviano inventando a animação nas paredes em alguma caverna da época. Ele nota que o fogo faz realçar uns traços em detrimento de outros e pinta pensando na influência do fogo sobre seu trabalho. Sim, inventamos a animação há centenas de milhares de anos.
Ou ainda pensar em nossos primeiros experimentos ao redor do “fazer música” como o Ser Sonoro - podcast do Fernando Cespedes lá da USP, material incrível que foi ao ar em meio a Pandemia e que vale o Play sempre e sempre. Em um de seus primeiro episódios ele nos conta que começamos a criar instrumentos e sons para capturar o assombro com a natureza. Um exemplo? O Pau de Chuva:

Bato e volto, e volto e bato naquela cama olhando um cinema sobrenatural de fim de tarde para me sentir afetado por isso: por onde anda o assombro neste contemporâneo cem por centro sempre aberto e convidativo? Há espaço para o incômodo motivador que nos faz pensar?
Tenho a hipótese que dá para pescar aqui e acolá algumas gotas, como bisões recém-pintados.
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A sequência tinha um plano secreto
Uma destas pescadas recentes foi algo que notei ao ver três séries que despontaram entre o final de janeiro e começo de Abril, The Pitt (Max), Adolescência (Netflix) e O Estúdio (Apple +). As sinopses estão circulando aí pelas redes mas, lá vai.
Em The Pitt (Max, 2025), acompanhamos a insana dedicação de Dr. Robby e sua equipe de socorristas em uma emergência pública em Pittsburg. A série, criada por R. Scott Gemmill (showrunner com vasta experiência em dramas médicos como "ER" e "NCIS: Los Angeles"), traz Noah Wyle de volta ao gênero médico como Dr. Michael "Robby" Robinavitch. O elenco inclui ainda nomes como Tracy Ifeachor como Dra. Heather Collins, Patrick Ball como Dr. Frank Langdon, Katherine LaNasa como Dana Evans e Supriya Ganesh como Dra. Samira Mohan.
Um detalhe: cada hora de episódio equivale a uma hora do plantão. Um plantão = uma temporada. Sim, vivemos o tempo real de dramas, mortes e salvamentos quase sem ar.
Bom, Adolescência (Netflix, 2025), você deve ter esbarrado aí pelas timelines. A minissérie em quatro episódios tem impactado muitos pais pelo mundo, eu inclusive. É o drama que nos apresenta Jamie Miller (Owen Cooper, mini-gênio), um jovem de 14 anos que é alvo de bullying na escola e se isola cada vez mais no mundo online. Seu pai Eddie (Stephen Graham) tenta ajudá-lo, mas a situação se complica quando uma tragédia abala a comunidade local.
A série foi criada pela dupla Jack Thorne (conhecido por "His Dark Materials" e "Enola Holmes") e Stephen Graham (ator de "This Is England" e "Boardwalk Empire"). Sua narrativa aborda temas sensíveis como bullying, cultura incel e os desafios da adolescência contemporânea, com referências a dramas criminais britânicos como "Broadchurch" e "The Fall". Estreou em 13 de março de 2025 na Netflix.
O aspecto técnico mais impressionante é sua filmagem inteiramente em plano-sequência. Cada episódio representa uma hora contínua na vida dos personagens, sem cortes aparentes. Para conseguir este feito, a equipe, liderada pelo diretor de fotografia Matthew Lewis, realizou ensaios intensivos e utilizou uma combinação inovadora de câmeras tradicionais e drones para criar transições perfeitas entre ambientes, exigindo um planejamento meticuloso de cada cena.
Bom, e tem a descoberta da semana que passou, O Estúdio (Apple TV+, 2025) que está aqui na edição de hoje como aquele alívio cômico necessário após tantas séries tensas. A série satiriza os bastidores de Hollywood através de Matt Remick (Seth Rogen), um executivo do Continental Studios recém-promovido a chefe de produção. Com um elenco de peso que inclui Catherine O'Hara, Kathryn Hahn e Ike Barinholtz, a série expõe com humor ácido as complexidades, egos e dramas por trás das câmeras.
Diferentemente das duas séries anteriores, "O Estúdio" adota um formato mais tradicional de narrativa, optando por construir sua crítica através do humor e situações caóticas que revelam as entranhas da indústria cinematográfica. Mas, em seu episódio de 26 de Março, justamente chamado de “Plano Sequência”, trouxe o insight que queria dividir com vocês na edição de hoje, que marca o retorno da news no formato 2025.
Se em The Pitt somos levamos pelo martelar imparável das horas; se em Adolescência ficamos sem ar em planos sequência de dão à vida real algo de onírico e sem pausas e seu em O Estúdio, mesmo em meio à comédia, usamos o plano-sequência como metalinguagem para um certo tipo de crítica à indústria do entretenimento… é correto dizer que temos nessa fronteira entre entretenimento e mundo real certa necessidade de legimitaçào.
Minha hipótese: essa enxurrada de material em plano sequência me conta sobre a necessidade das histórias se manifestarem no mesmo tom de nossas timelines. É o scroll infinito do áudio-visual.
E você? Curte Plano-Sequência? Tem alguma obra que impactou? Conhece alguém que já produziu algo neste formato que pode chegar por aqui?
Direto do fluxo da minha consciência para os Biscoitos da sua semana
🎥 Em meio às férias descubro que o governo vai lançar o Tela Brasil, um serviço de streaming gratuito para filmes nacionais, com investimento inicial de R$ 4,2 milhões e lançamento previsto para este ano →
🗒️ Quantos anos você tinha quando descobriu que existe uma batalha entre Notetakers de IA? →
⚛️ Ou que um cara criou um filme com… átomos? Descobri que a IBM criou o menor filme stop-motion do mundo, movendo moléculas de monóxido de carbono com um microscópio de tunelamento →
📖 Logo depois do Oscar leio o “Ainda estou aqui” e, sigo na minha opinião: livro pesado, texto descuidado. Mas dizem que é o estilo do autor →
Enquete non-sense
Para fechar antes de ir e você ficar pensando até semana que vem:
Usar ou não imagens estio Ghibli feitas pelo novo padrão do ChatGPT? O que isso esconde sobre o futuro dos Direitos Autorias? Estarei no chat durante a semana, passa lá e vamos construir juntos a edição da próxima semana?
Agora eu fui. bebam água. Dancem em poças de chuva.
Flusser é foda mesmo. Vou ver “O estúdio” tava ali na minha lista mas tímido.