O que eu vi em O Canto Livre de Nara Leão
Que se você não conhece foi uma compositora fundamental para a Bossa Nova, MPB e até sertanejo em sua época. Porém tem mais.
Recorro a algumas sinapses de memória afetiva, esse circuitos sempre mais fortes (e ainda assim sujeitos a uma constante reescritura) para conjurar uma imagem mental que me marcou a adolescência: os capítulos “de origem” de super-heróis da época atômica.
É claro que tive contato com recontações dessas tramas, consumindo nos anos 80/90 o que foi produzido nos 70 pela Marvel e DC (e uma pitadinha de Dark Horse) e publicada em formatinho pela Editora Abril. Mas, ainda assim, a imagem mental segue forte.
Rapidamente acesso essas reminiscências e elas se manifestam em uma sucessão de membros espalhados tal e qual estrela-do-mar (eu ouvi Homem Vitruviano?), ondas de raios desconhecidos para os adolescentes de então, a visão revelada do esqueleto em situações impossíveis de se suportar, um corpo perpassado por ondas “de força inimaginável”, como se costumava dizer, e a redenção final: nosso herói não morre e ora se recompõe milagrosamente como o Dr. Manhatan de Jon Osterman, ora sai ileso como o Hulk de Bruce Banner.
A questão é menos poder acessar essas memórias e mais entender porque elas seguem impressas depois de tantas referências conhecidas, outras tantas vivenciadas e até, falsa-modestamente, mais algumas tendo eu mesmo ajudado a criar no imaginário de meu singelo recorte geracional do início dos anos 2000.
Começo a partir desta premissa: elas me contagiam por um quê de melancolia de um momento tão grandiosamente monstruoso que resulta em imponderabilidades da vida. De pé e frente ao fim, nós resta apenas pensar que tudo acabou até que se descubra que não.
Mas rapidamente entendo que não é só isso. O que faz essa lembrança impressa depois de tanto tempo é que vemos (metafórica ou realmente) corpos sendo perpassados pelo espírito do seu tempo.
E é essa disposição de se colocar entre o imponderável e o espírito do seu tempo, e usar o seu corpo (naquilo que ele tem de físico e criativo) como anteparo de uma destruição criadora é a forma como eu traduzo a força do sentimento que me faz nunca esquecer destes personagens.
É claro que essa conclusão não nasceu assim e sequer pronta está. Estou aqui com vocês, a provável audiência, compartilhando a melhor tradução do sentimento a que consegui chegar em uma newsletter de quarta-feira.
Por que é um sentimento útil. E podemos fazer uso sim das coisas do coração-mente às vezes. Alguns, sempre. Mas sobre esses, chamamos psicopatas que não são o nosso tema hoje.
E qual seria, então, o tema desta edição? O Canto Livre de Nara Leão, série documental da GloboPlay.
Nara Leão deixou-se perpassar pelo espírito de seu tempo, traduzindo em descobertas musicais sua missão
Esta não é uma resenha tradicional, porque de tradicionalidades já sigo cansado, como na visita esporádica àqueles eventos de mercado que sempre falam as mesmas coisas que outros eventos falaram, em auto referenciamentos medíocres. Esta fala-não-ação me rouba tempo que não tenho e dela procuro fugir.
A não-fuga, contudo, fica ao encargo deste conteúdo tão especial que consumi na semana que passou desde o nosso último encontro. Antes que erre nas contas, embora tenha feito aniversário agora dia 16/01 - como em todos os anos desde 1973, diga-se de passagem -, não posso me considerar contemporâneo da jornada da compositora carioca. Até lembro de uma ou outra coisa nos anos 80 (novamente eles, pensarei sobre isso), mas contemporâneo, não.
E foi essa justamente a chave de interação com este conteúdo, produzido como original do streaming da Globo, do núcleo documental de Pedro Bial. Consumi os cinco capítulos como quem analisa um documento histórico, uma prova de passagem de um indivíduo por vários contemporâneos, ou gerações.
E, como recorte especial, esse de submeter a sua existência ao espírito do tempo. Vários deles, em um caminhar contínuo de rupturas, todas elas como etapas fragmentas de uma busca única, a qual não somos exatamente convidados a descobrir.
Senti-me, recorrendo à tática barata de remeter à introdução do texto, observando a origem de um super-ser atemporal, perpassado por raios invisíveis que se não matam, fazem renascer a cada corrente que Nara Leão acompanhou: de anti-musa da Bossa Nova, a descobridora do samba de morro (Marisa Monte foi por esse caminho em discos homenageando antigas tradições do morro carioca nos anos 90, aliás1), depois em sua conexão com Tropicalismo, Jovem Guarda e igualmente com a própria maternidade e um quase-amadorismo de eterno não compromisso com a indústria musical.
Tem todo esse discurso de desbravadora de uma liberdade feminista que ainda hoje se persegue mas, novamente, esta não é uma resenha normal, porque normalizar é um comportamento erroneamente valorizado como libertador. “Normalizem o roupão colorido", dizem os memes sem entender dos perigos desta mesma normalização para a construção de identidades, enfim.
O meu ponto é que este pequeno corpo, que zelava pelo joelho de fora apoiando o violão ou sequer penteava os cabelos antes dos shows, viu sim passar por si raios de diferentes momentos e, sobre eles, sublimou-se.
Se nos ensina algo, não saberia dizer. Talvez nós, eternos assistentes de cientistas, vivamos de trancar nosso futuro super-ser em câmeras por engano. Talvez a mesma história que registra os feitos não se engane e trame em segredo para tudo parecer acaso.
Como um beija-flor.
Antes de ir, mais uma indicação
Estou tentando terminar uma determinada série chamada “Arquivo 81” (Netflix, 2022). É um “founding footage”, aquele estilo de suspense em que você se depara com deteminado acervo (fitas em baixa definição em sua maioria) que vai lhe revelar segredos assustadores.
Aqui novamente me chama a atenção a possibilidade das camadas várias de consumo de determinada história, como uma narrativa pode ser perpassada por suportes. O grande mérito até aqui é esse, qual seja, o diálogo de suportes.
Ainda não terminei, mas sigo tentando.
E aquele teu podcast?
A edição da semana passada gerou algumas inbox ao estilo “pô, explodiu minha cabeça”, o que não era de forma alguma minha intenção. A ideia é trazê-los para debates de quando em vez que nos somem alguns pontos extras no estranhamento com a tecnologia, a comunicação e produtos culturais variados.
Mas, dito isso, vale lembrar que um dos produtos originais de todo esse ecossistema, o podcast que deu origem a tudo isso aqui, está esquentando a próxima temporada que pretendo tirar da gaveta dia 24 de janeiro de 2022.
A ideia é poder complementar a edição da newsletter com os comentários de vocês, ou outro tema que tenha surgido entre a edição e o final de semana.
Ou seja:
Pergunta final para terminar de começar o seu dia:
Que emoção você gostaria de ver perpassar por seu corpo neste exato momento?