Quem mordeu a maçã que caiu do pé?
WWDC 2023 traz óculos de realidade aumentada. Mas aumentei também o zoom neste tema para você entender a minha hipótese sobre a Apple de hoje.
Tá, vou falar. Mas de forma rápida e direta, como pede essa determinada materialidade aqui. Embora me considere um entusiasta sensato e racional das tecnologias todas, os anos passam e eu tenho trocado a idolatria fácil dos “comos” pela tortuosa fronteira dos “porquês”.
Isso me torna inconveniente em algumas conversas? Sim. Me faz torcer o nariz para algumas falácias startupeiras? Também. Me permite enxergar possíveis desdobramentos menos positivistas (ou platitudes generalizadas)? Com certeza.
Mas eu tento, viu? Tento realmente me empolgar. I.As me empolgaram, por exemplo. Não por inclinações neo-ludistas… mas porque são ferramentas que quando bem empregadas agilizam qualquer trabalho criativo. Se encaradas como ferramentas.
(tenho alguns rascunhos sobre possíveis desdobramentos não muito interessantes, que um dia solto. Mas, por agora - entendendo o agora, você do futuro, como o segundo semestre de 2023 -, me permiti a empolgação e seu uso pouco além do moderado. Comprovado pelas notificações insistentes de meu aplicativo do banco, indicando mais algumas mordidas no já enfraquecido limite do meu cartão de crédito)
Voltando.
Vejam o caso recente da WWDC2023, o Keynote da Apple sobre seus lançamentos da temporada. Além do iOS17, alguns novos Mac Studio (queria o mais baratrinho que bate fácil uns R$ 25K) e MacBooks Pro, o evento apresentou em seu momento “One more thing”, o óculos de Realidade Aumentada da empresa. Ohhhh… realidade aumentada.
Com a promessa de garantir imersão sem isolamento (tem certa transparência em seu visor), o Vision Pro chega… tarde. Mas chega com toda pompa:
Você pode encontrar vários detalhes aqui neste post do B9, ou neste aqui no Tecnoblog. Suas características técnicas, as inovações em seu design e forma de interagir e a integração com todo o ecossistema da Apple. Confesso que já fiz este tipo de cobertura e hoje ela me dá uma preguiça danada. De forma que prefiro seguir outros caminhos.
O que me chama atenção desde os primeiros segundos do vídeo de lançamento: ele é um gadget que chega antigo. E, salvo engano (eu provavelmente vou me enganar e voltar nos comentários daqui a uns meses), desconectado de plataformas Web3. É, portanto, algo possível já 10 anos pelo menos.
Daí, começo a me perguntar: Mas, por que agora? Por que desta forma? Por que neste tempo?
Chegar na hipótese para além dos comos já tão fartamente cobertos é o objetivo deste rápido e-mail-ensaio.
Mas, antes, um pouco de arqueologia sócio-técnica
Calma. Será rápido. Ela vai nos ajudar a montar determinado contexto. Para isso, precisamos voltar e refazer os passos que nos levaram até o lançamento de segunda-feira. Passos que não foram dados em linha reta e que, ouso dizer, estão a cada evento, mais afastados de uma jornada original.
Por exemplo, em 24 de janeiro de 1984, a Apple lançou o Macintosh durante o Super Bowl XVIII, em um dos comerciais mais icônicos da história da publicidade. O comercial, dirigido por Ridley Scott, mostrava uma mulher correndo com um martelo para destruir o status quo representado por um Big Brother na tela, fazendo alusão ao livro "1984" de George Orwell. O Macintosh foi apresentado como uma ferramenta para libertar as pessoas da opressão da tecnologia de computadores da época, que era difícil de usar e intimidante para a maioria das pessoas.
Pouco mais de uma década depois, em 1998, a Apple lançaria o iMac durante a Macworld Expo em Nova York. O desktop colorido foi apresentado como um computador "revolucionário" que combinava estilo e desempenho. O conceito por trás do iMac era criar um "hub digital" para a casa, onde as pessoas pudessem usar o computador para acessar a Internet, ouvir música, assistir filmes e muito mais. Eu tenho o recorte de jornal impresso que registra o momento guardado até hoje. O iMac foi um grande sucesso e ajudou a revitalizar a marca Apple, além de marcar o retorno de seu CEO original, depois de ter sido demitido anos antes.
E evoluiu o conceito de Hub Digital na casa dos americanos e em outros lares e empresas pelo mundo.
Calma que tem mais. Em um keynote histórico, Steve faria de novo: em 9 de janeiro de 2007, lançaria o iPhone durante a Macworld Expo em San Francisco. Jobs apresentou o primeiro de seu tipo como um dispositivo revolucionário que combinava um iPod, um telefone e um navegador da web em um único dispositivo.
O público presente ficou impressionado com as funcionalidades do iPhone, como a tela sensível ao toque e o recurso de navegação na web. O lançamento do iPhone mudou a indústria de smartphones para sempre e foi um grande sucesso comercial para a Apple, assim como o iPod, que revolucionou a maneira como as pessoas ouviam música. Com isso, ele criou uma nova indústria (a dos aplicativos) e abalou muitas outras.
O mercado ainda se recuperava quando, em 27 de janeiro de 2010, já doente, Jobs apresentaria o iPad em um evento de imprensa em San Francisco. O tablet foi apresentado como um dispositivo inovador que preenchia uma lacuna no mercado entre smartphones e laptops, permitindo a navegação na web, leitura de e-books, visualização de fotos e vídeos, além de rodar aplicativos.
O meu iPad 2 funciona até hoje, como um leitor de quadrinhos em PDF.
O lançamento do iPad foi um grande sucesso e ajudou a expandir ainda mais a linha de produtos da Apple. O dispositivo foi o primeiro de uma série de tablets que mudaram a indústria da tecnologia.
Além disso, o iPad mudou a maneira como as pessoas consomem conteúdo digital. A leitura de livros, revistas e jornais se tornou mais fácil e acessível, e muitos editores passaram a oferecer suas publicações em formato digital para o iPad e outros tablets. O dispositivo também foi amplamente adotado em ambientes corporativos, como uma ferramenta para apresentações e para acessar informações em movimento.
Aqui, a gente respira.
Perceba como o tom se repete: produtos da Apple representaram nos últimos 15 anos uma tradução de desejos por vezes até mesmo ocultos do grande público. São postos de fronteira entre as terras “Tecnologia” e “Cultura” por excelência.
"It's really hard to design products by focus groups. A lot of times, people don't know what they want until you show it to them." - Steve Jobs
Arrisco dizer que isso se deu até o Apple Watch.
Mas, concordo, hoje o mundo é outro. Logo, existem outros porquês.
Já fui do tipo que travava agenda para assistir aos Keynotes da WWDC. A sensação da época - se minha memória não me falha - era como desvelar os prognósticos de uma sacerdotisa de Delfos. Afinal, eles sabiam para onde a tecnologia iria nos próximos 10 anos e lançariam produtos tão avançados que sequer tínhamos noção que precisávamos tanto.
Quando fui impactado pelos cortes e resumos da edição de 2023, a partir de alguns perfis no TikTok e depois em matérias que citei na abertura, me peguei pensando em questões outras.
A Apple lançou seu óculos de Realidade Aumentada, o Vision Pro, em meio à maior crise americana. Isso levanta questionamentos sobre a decisão da empresa em lançar um dispositivo caro e datado em um momento de instabilidade econômica. Desde a crise financeira de 2008, a indústria da tecnologia tem sido impactada por diversas mudanças e desafios, incluindo a ascensão de startups chinesas, anos-luz mais disruptivas e a crescente competição global.
O Vision Pro, óculos de Realidade Aumentada lançado pela Apple, será comercializado por um preço inicial bem alto de 3.500 dólares em um momento de instabilidade econômica nos Estados Unidos, com a dívida interna do país ultrapassando o trilhão. Embora uma coisa não resolva a outra, o alto preço do dispositivo mostra uma desconexão com a realidade econômica e social do momento, levantando questionamentos sobre as prioridades da Apple em meio a uma crise financeira.
Por que não reverter seu caixa enorme para resolver problemas - ainda que envolvendo tecnologia - mas que gerem impacto social real? Embora esse argumento possa parecer ingênuo, é importante lembrar que às vezes precisamos fazer as perguntas mais simples e diretas para avaliar as prioridades de uma empresa.
Em tempos de crise financeira e social, é compreensível questionar por que a Apple optou por lançar um produto caro e datado em vez de investir em soluções tecnológicas que possam gerar um impacto social positivo. Sim, tem marca fazendo isso.
Por que insistir em um legado que hoje respira com a ajuda de aparelhos inócuos e sem propósito? Desde o Macintosh em 1984 até o iPhone em 2007, a Apple era conhecida por revolucionar a indústria da tecnologia com seus produtos inovadores e disruptivos. O Vision Pro, é o exemplo oposto: um gadget que chega antigo e desconectado de plataformas mais atuais.
E é daí que nasce a hipótese-sentimento desta quarta-feira, meninas, meninos e menines:
A Apple hoje soa mais como um Culto Retro-Futurista, inócuo e sem propósito.
Digo isso, com a certeza de que o incômodo não é só meu. Por que mais importante do que vestir uma cápsula de interrupção de realidade, é entender sobre o papel das empresas de tecnologia na sociedade contemporânea. Em vez de investir em soluções tecnológicas que possam gerar um impacto social positivo, a Apple está lançando produtos que podem não ter uma demanda significativa em tempos de incerteza econômica.
Não é à toa que um óculos nubla a visão de seu novo dono, ou, pior, mantém certa transparência cínica que envolve de alta-tecnologia um sentimento maior do que a alienação completa. Diria, um sentimento de sublimação da realidade.
Não é à toa que não se conecta com as plataformas mais disruptivas e é, antes de mais nada, pouco social. Precisa ser assim, para que a versão imersiva de seu OS represente uma separação completa do mundo que poderia ajudar a melhorar.
Para concluir, pois preciso correr com outras coisas aqui: é importante lembrar que a mudança é inevitável e que resistir a ela pode levar ao fracasso, enquanto abraçá-la pode trazer grandes benefícios para todos os envolvidos. Foi pensando assim que no lugar de seguirmos coletando e caçando, nos assentamos.
O que vimos na segunda-feira, contudo, não foi mudança. Foi o culto ao retro-futuro. Isolada, a Apple caiu da árvore já mordida.
Biscoitinhos para a provável audiência que também mora na fronteira entre tecnologia, comunicação e cultura.
Tenho lá as minhas reservas com livros de negócios. Quando os livros de negócio viram auto-ajuda, é quase um Fatality do Mortal Kombat na minha vontade de ler aquilo gritando: “Finish him”. Mas, esbarrei com um app chamado Headway que tem uma missão simples: oferecer sumários de livros e criar jornadas de conhecimento em texto e em áudio para organização pessoal, gestão e produtividade. Vale o play »
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Por hoje era isso: trazer uma nova mirada para o Vision Pro.
Eu tenho algumas visões, nenhuma delas é conclusiva. O que eu vejo da Apple: ela mantém sua aposta em design, propósito e status. Nenhum smartphone bateu o iphone em termos de encantamento-revolução. Não creio em papel social. Os preços populares de óculos VR deve seguir a lógica do mercado de smartphones. Sobre não ser O óculos, creio que eles anteciparam a onda para estar na vanguarda. Talvez, para eles, nesse momento que metaversos e web 3, no geral, engatinham, não tenham pressa em apresentar o melhor produto em termos de funcionalidade - se eles já podem fazer por encantamento do seu design. Agora, pra mim, o propósito cai em breve com uma nova postura das pessoas frente a sua privacidade/direitos/transparência. É muito fácil ser a Apple, até que a web 3 seja a nova internet, de fato. No final das contas, eu vejo uma Apple sem força dee captar novos entrantes, mas mantendo - sei lá - 60/70 por cento do seu público fiel. Isso se ela não mudar totalmente algumas premissas.
Não sei, Mauro, me fez refletir, mas pouco acrescentar ... valeu pelo texto.
Mauro, bem como em várias outras news que assino, não sei exatamente como caí aqui. Mas adorei ler a sua visão sobre o tema! Lúcida e atenta.